sexta-feira, novembro 03, 2006

Cap. 10 (Escrito por Daniela Cerqueira)

O cheiro mentolado, ardente e adocicado, que de repente lhes invadiu as narinas, fê-los recuar. Não foi o porte, nem a presença daquela silhueta vincada, cujo recorte desenhava a quadratura do caixilho da entrada… Foi o cheiro que dela imanava… Um cheiro a unguento, a ambulatório, a maleita dissecada, a morte…
- Eehr...Muito boa noite, Sr. Professor – balbuciou Aníbal ainda atordoado pelo embate balsâmico daquela figura, para quem se forçou a avançar, oferecendo desajeitadamente a mão a um cumprimento não consumado. - Peço desculpa de o vir incomodar a esta hora… temo que estivesse ocupado, mas… mas gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas sobre… decerto já ouviu falar…sobre o sucedido... Podemos entrar para….?... – arriscou inseguro, perante a expressão inexpugnável do professor, imóvel no patamar alteado da frontaria.
- Com certeza que sim, mas não hoje nem agora, se não se importam. Neste momento, estou a concluir uma pesquisa da faculdade que não posso interromper; de seguida, esperam-me na Universidade, mas…certamente que depois… Contudo, não vejo em que vos possa servir… – respondeu, imperturbável.
- Bem…o que aqui nos traz é também uma pesquisa, ou melhor uma investigação. Estamos a investigar os crimes das raparigas da D. Isaura e gostaríamos que nos desse alg....
- Ora, por favor ? interrompeu agastado... Em que vos poderei eu ajudar ? Não faço autópsias para a Polícia, já me chegam as dissecações da faculdade; Efectivamente, nessa noite fui chamado ao local, mas, quando vi do que se tratava incumbi um colega do hospital de tratar dos trâmites técnicos. Estou certo que vos poderá elucidar sobre o que viu…Procurem-no no necrotério da faculdade. E agora se me dão licença…já é tarde. Tenham um bom dia, meus senhores - impacientou-se o Professor, demonstrando intenção de encerrar a porta à sua frente.
- O corpo, Professor! Gostaríamos de saber se viu o corpo da…da vítima - Cortou Aníbal, travando a porta com o antebraço .
Um olhar empedernido de gelo penetrou a íris de Aníbal, tardando aqueles subtis instantes que fazem de alguns olhares uma viagem de longo curso pelos interstícios da alma que trespassam…
- Qual corpo, homem de Deus? Perguntou pausadamente, forçando-se a uma serenidade expirada. - Como quer Vocemêce que eu saiba de algum corpo relacionado com esses crimes, se acabei de lhe dizer que deleguei num colega? Isso não será trabalho vosso ? … e aproveitando a pausa aspergida de sarcasmo, endureceu a expressão e retomou um tom cerimonioso, concluindo: - E a propósito de trabalho, se não se importam, tenho de ir terminar o meu! - E sem mais, encerrou a porta, com a firmeza que pretendia fosse dada à sua indiferença.
A passada larga e apressada, com olhar fixo no chão, Aníbal rumou recto à esquadra, indolente ao frio que mais do que as mãos, lhe tolhia a cara, indiferente ao Abílio que descompassado o tentava acompanhar. Ressabiado, não tanto pela atitude sobranceira do Professor, mas com a sua própria incapacidade de se afirmar como autoridade em exercício, sentia o fervilhar das palavras soltas e frases desconexas que lera no auto de notícia lavrado pelo Moreira, nas notas por ele compiladas dos vários depoimentos e das declarações do Mendonça… Por mais que tentasse não conseguia unir as pontas soltas… “Como é que raio me vai desaparecer o corpo depois de tanta gente o ter visto morto ? E que esconde este Professor ? Irra, que nem depois de morta consegue dar sossego...”, remoía.
Fincando ainda mais os tacões na calçada, circundou os destroços da recém demolida Capela do Carmo, subiu a nova Martins de Carvalho, atravessou a antiga Horta de Santa Cruz e algumas cortadas depois, deixava bater atrás de si e quase nas ventas no Abílio, a porta da nova esquadra.
Como um animal obstinado no rasto a seguir, adentrou-se no gabinete, pegou na pasta que trazia filada e abrindo-a, espalhou os papéis sobre a secretária, dispondo-as como peças de um puzzle impossível.
Com o crânio em centrifugação, deixou-se cair na cadeira e apoiando nas mãos a testa ardente, fixou todos aqueles documentos dispersos aventando encontrar-lhes algum sentido. Deteve-se num à sorte:

“Auto de delligência”

Aos onze dias do mez de Fevereiro do Real Anno da Graça de Sua Majestade El-Rey D. Carlos, eu, subcomissário Moreira, fui, pelas 4 horas e meia da madrugada, interpelado por uns poppulares em grande afliçam, para autuar a ocorrência que vinha de suceder na Rua de Satão, desta cidade. Dadas as circumstâncias indiciarem um crimen violento, com desfecho de morte, fiz-me acompanhar do cabo Matias, de serviço à portaria. Uma vez lá chegados, vimos ror de gente alvoroçada, ajuntada à porta da mansão da D. Isaura, casa reputada pela frequência de muita burguezia desta cidade. Num dos quartos do 2º andar, jazia o cadáver de uma mulher, totalmente despojado de vestes, estendido sobre a cama. O cadáver apresentava indícios de ter sido espostejado com arma branca, presumivelmente faca, navalha ou punhal. No soalho do quarto havia inúmeras manchas de sangue já muito pisoteadas e nas paredes ao redor da cama, muitas outras de diverso tamanho e forma causadas por espichamento dos golpes consecutivos infligidos na vítima. Procedemos à inmediata evacuaçam do local, tendo eu, subcomissário, providenciado pela sellagem da porta do ediffício e ordenado ao cabo Matias que fosse chamar o médico do necrotério universitário. Inquiridos alguns dos presentes que intimei a comparecer na esquadra para prestar declarações, apurei tratar-se dos restos mortais de Adelaide da Conceição, cuja identificaçam, idade, naturallidade e filliaçam não pude registar com certidam face à inexistência de documentos. De acordo com os testemunhos dos poppulares ali presentes, presume tratar-se de uma mulher vinda de fora, que se hospedava há cerca de 5 annos na residência da D. Isaura, mui affamada nos ofícios relacionados com o comércio da carne, offensivos da Moral e dos Bons Costumes. Já soara a alvorada quando o ilustre fisicista Professor Reynaldo de Menezes y Garcia assomou ao prostíbulo para examinar o sobredito cadáver .”…

“Professor Reinaldo…professor Reinaldo…afinal não me enganei…Estiveste lá, magano… Onde raio estará agora o relatório? Eu ia jurar que vi um relatório…” Ruminou Aníbal enquanto vasculhava furiosamente aquela chusma de papelada espalhada sobre a mesa já de si confusa…”auto de inquirição…não… auto de declarações Isaura…Mário Mendon..não, não, não!!! raios! Tem de estar por aqui… Ó Abílio procura-me aqui o….ah! cá está!”

“RELATTORIUM D’EXAMEN POST-MORTEM

de ADELAIDE DA CONCEIÇÃO”

Individuo de sexo feminino, raça branca, com 1,65 m de altura e cerca de 55 kg de peso, idade compreendida entre os 20-25 anos, íris esverdeada, cabelos longos castanho-escuro e lisos, dentição completa e bem tratada, sem sinais exteriores de anomalias físicas.
Fillius nullus.
Apresentava-se totalmente nua, em cúbito dorsal; membros infferiores affastados e superiores cruzados ao nível dos pulsos, collocados acima da cabeça, indiciando tal posição e os hematomas que rodeiam os pulsos, ter sido coagida à imobilização, por blocqueio forçado de ambos os braços.

EXAMEN DO HÁBITO INTERNO

O cadáver apresenta o cinco feridas corto-perffurantes, com direcções e dimensões diversas e que atingem os planos profundos com destruiçam dos vasos carotídeos da traqueya e esóffago, duas delas, com extensão de 7 e 10 cms, uma na zona malar direita e as demais extensíveis à face lateral do pesccoço; 2 feridas corto-perffurantes na região da fossa illíaca sinistra, de direcção oblícqua de cima para baixo e da esquerda para a direita com consequente evisceração local e ruptura intestinal com abundante hemoperitoneu; Apresenta ainda ferida incisiva na região mamillar esquerda, de sentido vertical descendente, com delapidação integral do seio esquerdo e atingimento das estruturas pulmonares laterais; o toráx e toda a zona abdominal encontram-se abertos, com total exposição visceral e aniquilamento traumático dos órgãos nobres (coração, pulmões, rins, fígado, intestinos e baço), havendo uma longa incisão, com rombos incertos de tecido epidérmico rasgado ao longo dos 23 cms de comprimento, desde o diaffragma aos órgãos genitais, quod demonstrat ter sido effectuada em movimentos descontínuos e esfforçados em movimentos de serra, de sentido descendente, conforme se pode ver pelas várias incisuras lapidares, nas extremidades ósseas do diaffragma esventrado. Arrancamento e quebra das vértebras torácicas – 4 do lado direito e 5 do lado esquerdo – e esgaçamento dos tecidos muscullares e vascullares pelo affastamento forçoso – supostamente manual – da caixa torácica aberta em par, para extracção do coração e parte dos pulmões; Foram ainda extraídos, mas por mutilaçam, o úttero, as tromppas e todo o aparelho genital, com espostejamento vaginal e cesura cerce dos lábios e vulva.
Não há indícios de copula carnalis consumat.

Dos órgãos extraídos apenas se encontrava in crimen loccu, parte restante do coração, que à hora deste examen já se encontrava parcialmente comido, alegadamente por animais roedores. Desconhece-se o fim dado ao útero, pulmões, lábios vaginais e vulva.
Atendendo ao estado de coagulaçam do sangue supurado e retido na zona da bacia, aos livores cadavéricos, frigidez dos tecidos orgânicos e rigidez do globo ocular, é de presumir que a morte possa ter ocorrido entre as 02h e as 4h da manhã de hoje.
Pelo corpus delicti, é também de concluir que a mortis causa de Adelaide da Conceição resultou como efeito necessário e directo da agressão, sendo que face ao número e natureza dos ferimentos, ao meio utilizado e ao estado do cadáver, houve maniffesta intençam de matar.

Coimbra, aos onze de Fevereiro de 1905

O Tanathologista responsável :

Dr. Luiz Paes Affonso


Suspenso, como se de repente o pensamento se tivesse libertado do corpo e pairasse em câmara lenta, num vazio orbital, Aníbal vagueava… olhar parado, papel perdido na mão, entregue a uma qualquer espécie de transe.
À medida que lera a descrição detalhada e fria das múltiplas agressões, apercebera-se não estar perante um simples crime violento, um assassínio vulgar. Não. Não tinha sido a vontade de matar, que movera o agente; Tampouco era Adelaide o sujeito visado. Quando muito a ocasião, móbil… Com um décimo daquilo, morre quem quer que seja. Havia um ódio mais profundo, um asco provindo das entranhas, uma aversão que só os acossados sentem, contra algo que a vitima representa, algo que é imperioso banir, extirpar, aniquilar dê por onde der.
As agressões sôfrega e continuadamente desferidas naquele corpo feito cadáver... o coração arrancado e atirado aos ratos, o aparelho reprodutor obliterado... Ninguém faz tudo isto sem um motivo muito forte; nem um animal selvagem seria tão escrupuloso na perfídia... Como se aquele corpo fora a oportunidade encontrada para vingar todo um acumular de despeitos, temores e agonias somadas ao longo de uma Cruzada por um Bem maior… Vida por Vida. Ou matas ou morres!
Mas contra a Adelaide ?…não.
Estava a vê-la, ali mesmo... recostada naquele colchão rombo de tão batido, na alcova lúgubre de odores errantes, luz duvidosa, higiene improvável, onde - para além das coxas roliças que teimavam em escapar-lhe do negligé, apenas um sorriso ladino e uns seios hospitaleiros compunham o ambiente, convidando a sentar, quem lhe encomendava os serviços, 2 andares abaixo.
Um tamborilar, ao de leve na porta, bastava para um prolongado e ronronante “han-haann” que antecipava tudo quanto podia desejar quem se lhe dirigia. Adelaide não era uma rameira como as demais. O nome precedia-a. Aliás, poucos a tratavam como “a puta” e ainda assim, quando acontecia, era para dissimular a familiaridade com que o nome lhes saía, boca fora... No seu caso, o ofício, era um mero adjectivo. Superlativo sintético de bom.
A forma como esbanjava prazer e sensualidade no que fazia, levava os seus homens - mesmo os que lhe chegavam desanimados e caídos - a encherem-se de si, auto-reintegrando-se com que inflados pela capacidade de desempenho e sedução que através do seu gozo, recebiam.
O calor que das suas entranhas imanava, fazia por si só efervescer um homem em segundos, facto que sabia evitar com mestria e competência, torturando-o com sevícias, carícias e todas as demais perícias tão inconfessáveis quão inesquecíveis.
...Lembrava-se bem daquele fim de tarde, em que lá tinha ido desaguar a tensão de uma semana de turno consumida a sovar as vendedeiras e peixeiras revolucionárias “do Grelo”, fazia já quase 2 anos... ela pedira-lhe que simulasse com ela uma detenção… “daquelas de encostar à parede, mãos atrás das costas, pernas abertas…” explicava, entusiasmada. “Quero que me mostres como fazes com os larápios e bêbados das arruaças. Ou com os chulos das vielas! Vá! Imagina-me no gamanço! É fácil”. Insistia, cada vez mais excitada, plantando-se em pontas de pés à sua frente, como que à espera de instruções. Pouco convencido, Aníbal lá anuiu e começou a exemplificar, sem levar a sério o papel, para não a magoar. Logo ripostou que “não! tem de ser a valer, tens de me ver como uma peixeira de mãos à cinta e navalha nos dentes pronta a sacar-ta ”!
Aníbal lá tentou simular, com gestos lentos e estudados : “bem...agarrava-te assim; segurava-te com esta mão e … “
E, num disparate súbito, ela esbofeteia-o, pontapeia-o e de cabelos desgrenhados, expressão assanhada e dentes cerrados começa a socá-lo, desvairada, soltando impropérios, aos gritos, num verdadeiro ataque de fúria. Aturdido, tentou agarrá-la enquanto ela esperneava e rabujava como um animal bravo, despenhando-se no soalho, onde rebolava e entrelaçava-se-lhe nas pernas, completamente fora de si.
Aníbal sorri agora do medo que sentiu, do embaraço que seria se lhe rompessem pelo quarto, tais eram os gritos descontrolados e o barulho dos tralhos a cair e escaqueirarem-se no chão.
Acabou mesmo por ter de a imobilizar, à bruta, torcendo-lhe um braço por trás das costas e erguendo o outro, de forma a acometê-la contra a parede onde só parou com cara colada, no estuque já esfarripado…
Ofegante da luta e aproveitando tê-lo em pressão, estreitando-a contra a parede, Adelaide, mordeu-lhe a mão que lhe ganchava o braço e antes que ele pudesse reagir, agarrou-lhe o membro adormecido sobressaltando-o de susto, logo amansado não só pelas carícias compassadas com que o esfregava nas suas próprias nádegas, como pela voz dengosa e sorriso malicioso com que miava… “então é assim, meu tirano opressor…? é assim que domas as feras que ameaçam atacar-te, éhh…? …isso… … assim…ui que meeedo… o teu mosquetão está quasi, quasi pronto a fulminar-me… “
- Chefe ?! Vocemêce está bem? Eia, c’ um Camano ? Está branco o homem! Parece que viu alma do outro mundo, benza Deus ?

6 comentários:

Anónimo disse...

Temos aqui escrita de alta qualidade.

Anónimo disse...

: )

Obrigada, Rui; apenas tentei acompanhar.
Agora tamborilo os dedos de impaciência pelo próximo : )

treloc, treloc, treloc...

Daniela

Anónimo disse...

Parabéns Daniela.

Gostei francamente deste capítulo. Denso, bem escrito, bem armado no detalhe , completamente congruente com a história e com o tempo no qual esta se desenvolve.

treloc, treloc, treloc, também peo meu lado.

Anónimo disse...

Ó pá... corei outra vez...

Assim não vale..Tu és suspeita... e depois...que diabo...
num se mente!!! : ))

Obrigada, Carlota

Anónimo disse...

Sim senhora, grande capítulo..!!

Isto começa a criar contornos de história cada vez mais interessante... esfreguemos as mãos e esperemos (ansiosamente) pela continuação!!

Anónimo disse...

denso, ao mesmo tempo algo negro, americano. gostei. bastante. vou ler para trás. estou curioso.

dappertutto