quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Cap. 13 (Escrito por Pedro Castelo)

O trabalho feito até ali parecia não fazer sentido. O esforço não tinha levado a nada. Apenas a perceber que o que parecia estar resolvido, voltava à estaca zero. Aquele a quem tudo apontava como o homicida, estava a recuperar no hospital universitário, embora lentamente. O professor estava agora fora de perigo e tinha já acordado de um coma profundo, depois de alguns dias neste estado quase vegetativo. Os médicos diziam que tinha sido milagre.
Mas o que fazer agora? Por onde continuar a investigação? Não havia corpo onde se pudesse continuar a procurar pistas, se é que ainda fosse possível obtê-las e não se sabia a quem recorrer para fazer novas perguntas.
Coimbra soube rapidamente que o caso não estava concluído, estando outra vez a casa de D. Isaura sobre o olhar atento das autoridades, mas, como se sabe, até na polícia havia interesses de que a casa não fechasse definitivamente, ou por outras palavras, que as mulheres que lá trabalhavam não falassem demais. As putas continuavam a trabalhar, recebendo clientes todas as noites e a aturar estudantes ricos e mimados sem experiência sexual. Mas cada vez com mais medo. Medo de serem estripadas da forma brutal que as suas colegas haviam sido. Atendiam cada cliente com muito cuidado e muita cautela.
Quem também tinha cada vez mais medo era Mário. Continuava sem saber por quem tinha sido sequestrado, procurando estar sempre à espera de voltar a apanhar um valente susto e até possivelmente estar em risco iminente de morte. Mário tinha a completa consciência disso.
Um dos seus colegas do curso, aquele a quem Mário mais confiava e que era o seu confidente e companheiro de grandes noitadas de álcool, percebeu a perturbação em que ele vivia, sabendo que a sua agonia estava relacionada com o caso dos dois assassinatos.
António Mendonça acompanhava o seu colega para todo o lado e agora que a época de exames tinha acabado, tinham mais tempo um para o outro.
- Que tens? Não paras de olhar para a rua! – perguntou ao sabor de um belo vinho do Porto.
- Sinto-me cada vez mais asfixiado. Parece que há alguém atrás de mim. Penso que estou a ser perseguido. Não sentiste que vieram dois homens sempre atrás de nós desde a Faculdade até aqui?
- Não, não reparei!
- Sim, estou a ser seguido mas não consigo saber quem é, nem o que quer de mim. -retorquiu Mário.
Um silêncio constrangedor abateu-se sobre António que se apercebeu naquele momento da possível gravidade da situação.
A curiosidade assaltou-o: - Mas o que é que tu podes saber de assim tão grave que faça alguém andar a seguir-te?
- Fui o primeiro a ter contacto com o corpo e vi-o a ser transportado pelo Professor e pela D. Isaura.
- Estás então a pensar que podem estar a desconfiar de ti?
- Não. O facto de ter sido o primeiro a ter contacto com os restos mortais de Adelaide pode servir de limpeza de culpa de alguém, que esse mesmo quer transferir para mim. O verdadeiro assassino está a tentar safar-se da sua responsabilidade. Quer aproveitar o facto de eu ter sido também o primeiro a dar o alarme que Adelaide estava morta e que assim me estou a tentar livrar de uma culpa que não tenho Querem que eu assuma a verdadeira responsabilidade do assassinato.
- Mas que tencionas fazer?
-Não sei. Estou de pés e mãos atadas.
Nisto pagam o seu vinho e saem do habitual estabelecimento já com álcool a circular no sangue.
Dirigem-se à sua república.
Os homens que os seguiam voltaram a atacar, tendo esperado sorrateiramente pela sua saída. Os dois amigos sentiram-se ameaçados e ao passarem pela igreja entraram como forma de escape.
António fintou os dois homens e saiu por uma porta lateral.
Mário tentou matar dois coelhos com uma cajadada: aproveitava para se confessar e pedir ajuda.
Entrou no confessionário, ajoelhou-se e disse – Senhor Padre pequei e quero o perdão da Igreja!
Ainda encadeado pelo sol intenso do exterior, não viu que aquele que seria o seu confessor estava em contacto directo com a sua face, não tendo nada a atrapalhar se quisesse chegar ao contacto físico. Mário não o conseguiu identificar. Levou um murro valente na cara, batendo com a cabeça na parede do seu lado do confessionário e ficou inconsciente.

terça-feira, novembro 21, 2006

Cap. 12 (Escrito por Runa Mariano)

"EXTRA, EXTRA!! VEJA NO JORNAL DE COIMBRA! APANHADO O
ASSASSINO DAS MULHERES DE MAU PORTE!!,
bramavam os ardinas da cidade,
vendendo jornais como se fossem pãezinhos quentes.

No posto de polícia, o chefe Aníbal Cavaco lia a notícia de primeira página -“Para grande espanto de toda a academia e da cidade de Coimbra, o conceituado Professor Reinaldo de Menezes y Garcia, um dos mais ilustres mestres da nossa Universidade, foi ontem, tarde da noite, surpreendido em flagrante quanto se prestava a matar, a golpes de navalha, aquela que seria a sua terceira vítima. Na refrega que se seguiu, enquanto tentavam manietá-lo, foi o meliante acometido por uma apoplexia assaz violenta, jazendo agora, entre a vida e a morte, no Hospital Universitário. Este caso macabro teve início…” Aníbal pôs o jornal de lado, endireitando o corpo na cadeira e acendeu pensativamente o quarto cigarro da manhã.
De repente adentrou o acanhado gabinete um excitado Abílio.
- “Maravilha, hein chefe? Um caso complicado resolvido em três tempos. O capitão Casimiro está fusiante de contente.
- Fusiante, Abílio? Não quererás dizer esfusiante?

- Foi o que eu disse, chefe.
- Cala-te um bocado, e senta-te aí, rapaz. Não há então nenhuma dúvida nessa cabecinha?
- Dúvida, chefe? Qual dúvida?
- Dúvida, homem, dúvida de que o culpado seja mesmo o professor!
- Por mor de Deus, chefe, atão o homem não foi apanhado a bem dizer com a mão na massa? Que dúvida pode haver, hein?
- Pronto, acalma essa cabecinha e tenta concentrar-te, fiz aqui um resumo do que sabemos deste caso e quero recapitular isto contigo.
- Desculpe, chefe, quer o quê?
- Rever o caso, Abílio, trocar impressões, ver se nos escapou alguma coisa, percebes?!
- Claro, chefe, reca… coméra a palavra, reca…
- Deixa, Abílio, não é importante, cala-te e ouve! Temos, então, um suspeito principal, o professor Reinaldo, vejamos o que sabemos dele. É idoso e não deve muito à saúde, certo?
- Certo, chefe!
- Foi chamado na noite do primeiro crime, mas nega tal facto.

- Certo, chefe!
- Se me dizes outra vez “certo, chefe” não respondo por mim…
- Certo chefe, quer dizer, desculpe, chefe.
- …
- Pronto, chefe, não fique assim, homem, olhe lá o coração, eu calo-me já.
- … continuando… foi visto pelo Mário Mendonça, à porta da casa da Isaura, preparando-se para levar o corpo da Adelaide, ajudado por dois desconhecidos, tendo-se confirmado que a sepultura da infeliz estava vazia. E foi apanhado pelo mesmo Mário quando, presumivelmente, se preparava para cometer um homicídio na pessoa da D. Isaura.
- Não era na pessoa, era mesmo nela, chefe, não estava lá mais ninguém.
- …
- Pronto, chefe, pronto, mas depois tem que me explicar essa.
- Abílio, é uma maneira de falar, quando se diz na pessoa de alguém, quer-se dizer nessa ou a essa mesma pessoa, entendeste?
- Entendi, chefe, pode continuar.
- Muito bem, agora uma pergunta, quando fomos ao hospital notaste no professor alguma ferida recente, uma ferida que pudesse ter sangrado abundantemente?
- Ah Ah! Então era isso que o chefe procurava quando rondou a cama a levantar as mantas e a espreitar. Ah, magano, comé qu’eu ia adivinhar? Mas uma ferida? Praquê?
- Lembras-te do segundo assassínio, o da Angélica? Lembras-te do rasto de sangue na janela e no telhado? Achas que a morta saiu para apanhar ar e voltou depois ao quarto?
- ahhh… agora é que percebi mesmo, o sangue era do assassino… mas’atão se o professor não tem uma ferida… atão não pode ser…
- Claro que não, Abílio, claro que não. E mesmo que tivesse, acreditas que um homem idoso e fragilizado consegue abrir peitos a golpes de canivete? E depois sair pela janela, saltitando de telhado em telhado? E mesmo que conseguisse, achas lógico que um eminente tanathologista, que tem acesso às ferramentas próprias e adequadas à sua profissão, iria usar uma navalha para o fazer?
- Ora, esta, ora esta… - repetia Abílio, com cara de espanto - o chefe realmente… ora esta… - de repente levantou-se de um salto - temos que ir dizer ao capitão, o homem ia a caminho de falar com o governador, ai Jesus, isto é que vai ser…
- Calma, senta-te, deixa lá o Casimiro agora. Tentei demovê-lo, não me quis ouvir, agora que se desunhe. Vamos mas é olhar agora para o Mário Mendonça.
- Ele está cá?
- ‘Olhar’, ‘debruçar-nos sobre’, ‘falar de’, homem de Deus!
- O chefe hoje parece na pessoa de um doutor a falar.
Aníbal esboçou um sorriso, decidindo nem corrigir o pobre Abílio.
- Mário Mendonça, filho de boas famílias, estudante aplicado, rapaz calmo, sem nada de anormal, até que, repara bem, descobre o cadáver da Adelaide, apanha o mesmo cadáver a ser roubado pelo professor Reinaldo, é agredido e raptado sem causa conhecida, conseguindo fugir pelos seus próprios meios e, para completar, é ele que surpreende e evita a dita tentativa de homicídio da Isaura? O que te diz tudo isto, Abílio?
- Não sei chefe, pode ser “cuncidência”, não acha?
- Pode sim, Abílio, pode ser essa tal de “cuncidência”, é muita mas pode. E, finalmente temos a terceira peça deste enredo, a D. Isaura.
- E que tem ela, chefe?
- Tem que foram cometidos dois crimes na sua casa e ninguém deu por nada. Tem que é cúmplice do professor Reinaldo no desaparecimento do cadáver da Adelaide, mas nega. Tem que, logo antes do Mário ser raptado, passou esbaforida por ele, gritando-lhe que fugisse, mas diz que nada viu. E tem que ia sendo apunhalada pelo professor, mas afirma que desconhece os motivos. É muito ‘tem’, não achas?
- Ó chefe, que embrulhada danada, quer dizer que estamos como no princípio, não é?
- Resumiste perfeitamente, Abílio, e ou muito me engano ou este caso ainda tem pano para mangas…

---------------------------------

Deitado de costas na enxerga, o olhar febril, fixo para além do tecto, o corpo em fogo, a voz ecoando na sua cabeça, premente, imperativa, exigindo sangue…

sábado, novembro 11, 2006

Capítulo 11 (Escrito por Gonçalo Santos)

Caiu a noite e Mário Mendonça dirigiu-se à famosa “Isaurinha”. À falta de ideia melhor, decidiu confrontar directamente Isaura com o facto de a ter visto, juntamente com o Prof. Reinaldo, a transportar o corpo de Adelaide numa carreta. Ocorrera-lhe por diversas vezes confrontar directamente o Prof. Reinaldo, mas isso sempre lhe pareceu arriscado. Porém, quando lhe ocorreu a ideia de confrontar Isaura, ficou tão agradado que lhe deu vontade de gritar “Eureka!” a plenos pulmões.
Através da forte chuva que caía, Mário vislumbrou finalmente a entrada do mais famoso bordel de Coimbra. Não havia ninguém na entrada mas a porta estava apenas encostada, provavelmente por descuido de quem entrava ou, talvez, pela falta de hábito de fechá-la. Fosse como fosse, Mário resolveu empurrá-la, já que não sentia necessidade de bater para entrar naquele lugar e também se limitou a deixá-la encostada. Lá dentro surpreendeu-se por ver tudo às escuras, mas ficou ainda mais surpreendido quando ouviu uma voz familiar que provinha do andar de cima: era o Prof. Reinaldo. Apurou o ouvido e distinguiu também uma outra voz que dialogava com ele. Era Isaura, a proprietária daquele bordel. Mário optou por subir as escadas, silenciosamente, para poder escutar convenientemente a conversa. Era a sua grande oportunidade de saber o que escondiam aqueles dois! As vozes desciam do quarto de Isaura, uma divisão à qual a maior parte dos frequentadores do local nunca tinha acesso. Mário aproximou-se da porta e pôs-se à escuta.
“Isaura, não sabes como fiquei por me teres tratado tão mal! Ainda bem que fizemos as pazes, agora. Sem ti já não vivo mais! Sinto o cheiro do teu corpo no meio de todos os tecidos da minha loja e imagino-me a despir-te magníficos vestidos de todos eles.”
“Podes parar.” - disse Isaura.
“Achas que estou a brincar? Achas que são doideiras de um homem que já devia ter aprendido a ser mais maduro? Pois bem, eu devia ser mais maduro mesmo, mas contigo não consigo. Consegues fazer de mim o melhor e o pior dos homens. Fico louco quando me tratas mal.” “Mas hoje não te tratei mal, pois não?”
“Não, realmente não. Sinto-me um homem novo. Tu fazes coisas que mais nenhuma mulher sabe fazer.”
“Então pára de lamechisses. Eu preciso de um homem, não de um desses rapazolas inseguros que frequentam o meu estabelecimento. Repito aquilo que te disse antes: desiludiste-me, Reinaldo! E não faças essa cara! Vais voltar ao rapazola inseguro? Se vais, podes sair já deste quarto!”
“Porque me tratas assim, Isaura?”
“Sabes muito bem. Devíamos ter deixado tudo seguir o seu rumo normal. Para que quiseste esconder o corpo da Adelaide? Porque não contaste à polícia tudo o que viste? Porque tiveste medo, foi o que foi. Por fora pareces forte e impiedoso, mas por dentro és cobarde e medroso, como só eu sei, e a tua cobardia está a fartar-me. Repito, estás a a fartar-me! Pões-nos em perigo aos dois!”
O Prof. Reinaldo sentiu a raiva e o ódio a querer apoderar-se dele. A sua cara começou a ficar lívida e o perigo para Isaura ficou iminente. Ela, experiente, sentiu a mudança e procurou deitar água na fervura.
“A verdade é que me irritas, mas, no fundo, não há mais nenhum homem para mim além de ti. Essa é a verdade! Mas porque me irritas dessa maneira? Porque nos colocas em perigo? Parece que tens alguma cumplicidade com esse teu misterioso assistente que desencantaste sabe-se lá onde...”
Mas o Prof. Reinaldo já não ouvia mais nada. A sua alma estava tolhida por uma raiva infinita que o impelia a matar.
“Mas que olhar é esse, Reinaldo? Se queres convencer-me que podes meter medo a alguém estás a conseguir convencer-me. Podes parar. Que navalha é essa? Meu Deus, enlouqueceu de vez! Pára com isso! Agora, estás realmente a meter-me medo!
Mário não aguentou mais e irrompeu no quarto de Isaura.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Cap. 10 (Escrito por Daniela Cerqueira)

O cheiro mentolado, ardente e adocicado, que de repente lhes invadiu as narinas, fê-los recuar. Não foi o porte, nem a presença daquela silhueta vincada, cujo recorte desenhava a quadratura do caixilho da entrada… Foi o cheiro que dela imanava… Um cheiro a unguento, a ambulatório, a maleita dissecada, a morte…
- Eehr...Muito boa noite, Sr. Professor – balbuciou Aníbal ainda atordoado pelo embate balsâmico daquela figura, para quem se forçou a avançar, oferecendo desajeitadamente a mão a um cumprimento não consumado. - Peço desculpa de o vir incomodar a esta hora… temo que estivesse ocupado, mas… mas gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas sobre… decerto já ouviu falar…sobre o sucedido... Podemos entrar para….?... – arriscou inseguro, perante a expressão inexpugnável do professor, imóvel no patamar alteado da frontaria.
- Com certeza que sim, mas não hoje nem agora, se não se importam. Neste momento, estou a concluir uma pesquisa da faculdade que não posso interromper; de seguida, esperam-me na Universidade, mas…certamente que depois… Contudo, não vejo em que vos possa servir… – respondeu, imperturbável.
- Bem…o que aqui nos traz é também uma pesquisa, ou melhor uma investigação. Estamos a investigar os crimes das raparigas da D. Isaura e gostaríamos que nos desse alg....
- Ora, por favor ? interrompeu agastado... Em que vos poderei eu ajudar ? Não faço autópsias para a Polícia, já me chegam as dissecações da faculdade; Efectivamente, nessa noite fui chamado ao local, mas, quando vi do que se tratava incumbi um colega do hospital de tratar dos trâmites técnicos. Estou certo que vos poderá elucidar sobre o que viu…Procurem-no no necrotério da faculdade. E agora se me dão licença…já é tarde. Tenham um bom dia, meus senhores - impacientou-se o Professor, demonstrando intenção de encerrar a porta à sua frente.
- O corpo, Professor! Gostaríamos de saber se viu o corpo da…da vítima - Cortou Aníbal, travando a porta com o antebraço .
Um olhar empedernido de gelo penetrou a íris de Aníbal, tardando aqueles subtis instantes que fazem de alguns olhares uma viagem de longo curso pelos interstícios da alma que trespassam…
- Qual corpo, homem de Deus? Perguntou pausadamente, forçando-se a uma serenidade expirada. - Como quer Vocemêce que eu saiba de algum corpo relacionado com esses crimes, se acabei de lhe dizer que deleguei num colega? Isso não será trabalho vosso ? … e aproveitando a pausa aspergida de sarcasmo, endureceu a expressão e retomou um tom cerimonioso, concluindo: - E a propósito de trabalho, se não se importam, tenho de ir terminar o meu! - E sem mais, encerrou a porta, com a firmeza que pretendia fosse dada à sua indiferença.
A passada larga e apressada, com olhar fixo no chão, Aníbal rumou recto à esquadra, indolente ao frio que mais do que as mãos, lhe tolhia a cara, indiferente ao Abílio que descompassado o tentava acompanhar. Ressabiado, não tanto pela atitude sobranceira do Professor, mas com a sua própria incapacidade de se afirmar como autoridade em exercício, sentia o fervilhar das palavras soltas e frases desconexas que lera no auto de notícia lavrado pelo Moreira, nas notas por ele compiladas dos vários depoimentos e das declarações do Mendonça… Por mais que tentasse não conseguia unir as pontas soltas… “Como é que raio me vai desaparecer o corpo depois de tanta gente o ter visto morto ? E que esconde este Professor ? Irra, que nem depois de morta consegue dar sossego...”, remoía.
Fincando ainda mais os tacões na calçada, circundou os destroços da recém demolida Capela do Carmo, subiu a nova Martins de Carvalho, atravessou a antiga Horta de Santa Cruz e algumas cortadas depois, deixava bater atrás de si e quase nas ventas no Abílio, a porta da nova esquadra.
Como um animal obstinado no rasto a seguir, adentrou-se no gabinete, pegou na pasta que trazia filada e abrindo-a, espalhou os papéis sobre a secretária, dispondo-as como peças de um puzzle impossível.
Com o crânio em centrifugação, deixou-se cair na cadeira e apoiando nas mãos a testa ardente, fixou todos aqueles documentos dispersos aventando encontrar-lhes algum sentido. Deteve-se num à sorte:

“Auto de delligência”

Aos onze dias do mez de Fevereiro do Real Anno da Graça de Sua Majestade El-Rey D. Carlos, eu, subcomissário Moreira, fui, pelas 4 horas e meia da madrugada, interpelado por uns poppulares em grande afliçam, para autuar a ocorrência que vinha de suceder na Rua de Satão, desta cidade. Dadas as circumstâncias indiciarem um crimen violento, com desfecho de morte, fiz-me acompanhar do cabo Matias, de serviço à portaria. Uma vez lá chegados, vimos ror de gente alvoroçada, ajuntada à porta da mansão da D. Isaura, casa reputada pela frequência de muita burguezia desta cidade. Num dos quartos do 2º andar, jazia o cadáver de uma mulher, totalmente despojado de vestes, estendido sobre a cama. O cadáver apresentava indícios de ter sido espostejado com arma branca, presumivelmente faca, navalha ou punhal. No soalho do quarto havia inúmeras manchas de sangue já muito pisoteadas e nas paredes ao redor da cama, muitas outras de diverso tamanho e forma causadas por espichamento dos golpes consecutivos infligidos na vítima. Procedemos à inmediata evacuaçam do local, tendo eu, subcomissário, providenciado pela sellagem da porta do ediffício e ordenado ao cabo Matias que fosse chamar o médico do necrotério universitário. Inquiridos alguns dos presentes que intimei a comparecer na esquadra para prestar declarações, apurei tratar-se dos restos mortais de Adelaide da Conceição, cuja identificaçam, idade, naturallidade e filliaçam não pude registar com certidam face à inexistência de documentos. De acordo com os testemunhos dos poppulares ali presentes, presume tratar-se de uma mulher vinda de fora, que se hospedava há cerca de 5 annos na residência da D. Isaura, mui affamada nos ofícios relacionados com o comércio da carne, offensivos da Moral e dos Bons Costumes. Já soara a alvorada quando o ilustre fisicista Professor Reynaldo de Menezes y Garcia assomou ao prostíbulo para examinar o sobredito cadáver .”…

“Professor Reinaldo…professor Reinaldo…afinal não me enganei…Estiveste lá, magano… Onde raio estará agora o relatório? Eu ia jurar que vi um relatório…” Ruminou Aníbal enquanto vasculhava furiosamente aquela chusma de papelada espalhada sobre a mesa já de si confusa…”auto de inquirição…não… auto de declarações Isaura…Mário Mendon..não, não, não!!! raios! Tem de estar por aqui… Ó Abílio procura-me aqui o….ah! cá está!”

“RELATTORIUM D’EXAMEN POST-MORTEM

de ADELAIDE DA CONCEIÇÃO”

Individuo de sexo feminino, raça branca, com 1,65 m de altura e cerca de 55 kg de peso, idade compreendida entre os 20-25 anos, íris esverdeada, cabelos longos castanho-escuro e lisos, dentição completa e bem tratada, sem sinais exteriores de anomalias físicas.
Fillius nullus.
Apresentava-se totalmente nua, em cúbito dorsal; membros infferiores affastados e superiores cruzados ao nível dos pulsos, collocados acima da cabeça, indiciando tal posição e os hematomas que rodeiam os pulsos, ter sido coagida à imobilização, por blocqueio forçado de ambos os braços.

EXAMEN DO HÁBITO INTERNO

O cadáver apresenta o cinco feridas corto-perffurantes, com direcções e dimensões diversas e que atingem os planos profundos com destruiçam dos vasos carotídeos da traqueya e esóffago, duas delas, com extensão de 7 e 10 cms, uma na zona malar direita e as demais extensíveis à face lateral do pesccoço; 2 feridas corto-perffurantes na região da fossa illíaca sinistra, de direcção oblícqua de cima para baixo e da esquerda para a direita com consequente evisceração local e ruptura intestinal com abundante hemoperitoneu; Apresenta ainda ferida incisiva na região mamillar esquerda, de sentido vertical descendente, com delapidação integral do seio esquerdo e atingimento das estruturas pulmonares laterais; o toráx e toda a zona abdominal encontram-se abertos, com total exposição visceral e aniquilamento traumático dos órgãos nobres (coração, pulmões, rins, fígado, intestinos e baço), havendo uma longa incisão, com rombos incertos de tecido epidérmico rasgado ao longo dos 23 cms de comprimento, desde o diaffragma aos órgãos genitais, quod demonstrat ter sido effectuada em movimentos descontínuos e esfforçados em movimentos de serra, de sentido descendente, conforme se pode ver pelas várias incisuras lapidares, nas extremidades ósseas do diaffragma esventrado. Arrancamento e quebra das vértebras torácicas – 4 do lado direito e 5 do lado esquerdo – e esgaçamento dos tecidos muscullares e vascullares pelo affastamento forçoso – supostamente manual – da caixa torácica aberta em par, para extracção do coração e parte dos pulmões; Foram ainda extraídos, mas por mutilaçam, o úttero, as tromppas e todo o aparelho genital, com espostejamento vaginal e cesura cerce dos lábios e vulva.
Não há indícios de copula carnalis consumat.

Dos órgãos extraídos apenas se encontrava in crimen loccu, parte restante do coração, que à hora deste examen já se encontrava parcialmente comido, alegadamente por animais roedores. Desconhece-se o fim dado ao útero, pulmões, lábios vaginais e vulva.
Atendendo ao estado de coagulaçam do sangue supurado e retido na zona da bacia, aos livores cadavéricos, frigidez dos tecidos orgânicos e rigidez do globo ocular, é de presumir que a morte possa ter ocorrido entre as 02h e as 4h da manhã de hoje.
Pelo corpus delicti, é também de concluir que a mortis causa de Adelaide da Conceição resultou como efeito necessário e directo da agressão, sendo que face ao número e natureza dos ferimentos, ao meio utilizado e ao estado do cadáver, houve maniffesta intençam de matar.

Coimbra, aos onze de Fevereiro de 1905

O Tanathologista responsável :

Dr. Luiz Paes Affonso


Suspenso, como se de repente o pensamento se tivesse libertado do corpo e pairasse em câmara lenta, num vazio orbital, Aníbal vagueava… olhar parado, papel perdido na mão, entregue a uma qualquer espécie de transe.
À medida que lera a descrição detalhada e fria das múltiplas agressões, apercebera-se não estar perante um simples crime violento, um assassínio vulgar. Não. Não tinha sido a vontade de matar, que movera o agente; Tampouco era Adelaide o sujeito visado. Quando muito a ocasião, móbil… Com um décimo daquilo, morre quem quer que seja. Havia um ódio mais profundo, um asco provindo das entranhas, uma aversão que só os acossados sentem, contra algo que a vitima representa, algo que é imperioso banir, extirpar, aniquilar dê por onde der.
As agressões sôfrega e continuadamente desferidas naquele corpo feito cadáver... o coração arrancado e atirado aos ratos, o aparelho reprodutor obliterado... Ninguém faz tudo isto sem um motivo muito forte; nem um animal selvagem seria tão escrupuloso na perfídia... Como se aquele corpo fora a oportunidade encontrada para vingar todo um acumular de despeitos, temores e agonias somadas ao longo de uma Cruzada por um Bem maior… Vida por Vida. Ou matas ou morres!
Mas contra a Adelaide ?…não.
Estava a vê-la, ali mesmo... recostada naquele colchão rombo de tão batido, na alcova lúgubre de odores errantes, luz duvidosa, higiene improvável, onde - para além das coxas roliças que teimavam em escapar-lhe do negligé, apenas um sorriso ladino e uns seios hospitaleiros compunham o ambiente, convidando a sentar, quem lhe encomendava os serviços, 2 andares abaixo.
Um tamborilar, ao de leve na porta, bastava para um prolongado e ronronante “han-haann” que antecipava tudo quanto podia desejar quem se lhe dirigia. Adelaide não era uma rameira como as demais. O nome precedia-a. Aliás, poucos a tratavam como “a puta” e ainda assim, quando acontecia, era para dissimular a familiaridade com que o nome lhes saía, boca fora... No seu caso, o ofício, era um mero adjectivo. Superlativo sintético de bom.
A forma como esbanjava prazer e sensualidade no que fazia, levava os seus homens - mesmo os que lhe chegavam desanimados e caídos - a encherem-se de si, auto-reintegrando-se com que inflados pela capacidade de desempenho e sedução que através do seu gozo, recebiam.
O calor que das suas entranhas imanava, fazia por si só efervescer um homem em segundos, facto que sabia evitar com mestria e competência, torturando-o com sevícias, carícias e todas as demais perícias tão inconfessáveis quão inesquecíveis.
...Lembrava-se bem daquele fim de tarde, em que lá tinha ido desaguar a tensão de uma semana de turno consumida a sovar as vendedeiras e peixeiras revolucionárias “do Grelo”, fazia já quase 2 anos... ela pedira-lhe que simulasse com ela uma detenção… “daquelas de encostar à parede, mãos atrás das costas, pernas abertas…” explicava, entusiasmada. “Quero que me mostres como fazes com os larápios e bêbados das arruaças. Ou com os chulos das vielas! Vá! Imagina-me no gamanço! É fácil”. Insistia, cada vez mais excitada, plantando-se em pontas de pés à sua frente, como que à espera de instruções. Pouco convencido, Aníbal lá anuiu e começou a exemplificar, sem levar a sério o papel, para não a magoar. Logo ripostou que “não! tem de ser a valer, tens de me ver como uma peixeira de mãos à cinta e navalha nos dentes pronta a sacar-ta ”!
Aníbal lá tentou simular, com gestos lentos e estudados : “bem...agarrava-te assim; segurava-te com esta mão e … “
E, num disparate súbito, ela esbofeteia-o, pontapeia-o e de cabelos desgrenhados, expressão assanhada e dentes cerrados começa a socá-lo, desvairada, soltando impropérios, aos gritos, num verdadeiro ataque de fúria. Aturdido, tentou agarrá-la enquanto ela esperneava e rabujava como um animal bravo, despenhando-se no soalho, onde rebolava e entrelaçava-se-lhe nas pernas, completamente fora de si.
Aníbal sorri agora do medo que sentiu, do embaraço que seria se lhe rompessem pelo quarto, tais eram os gritos descontrolados e o barulho dos tralhos a cair e escaqueirarem-se no chão.
Acabou mesmo por ter de a imobilizar, à bruta, torcendo-lhe um braço por trás das costas e erguendo o outro, de forma a acometê-la contra a parede onde só parou com cara colada, no estuque já esfarripado…
Ofegante da luta e aproveitando tê-lo em pressão, estreitando-a contra a parede, Adelaide, mordeu-lhe a mão que lhe ganchava o braço e antes que ele pudesse reagir, agarrou-lhe o membro adormecido sobressaltando-o de susto, logo amansado não só pelas carícias compassadas com que o esfregava nas suas próprias nádegas, como pela voz dengosa e sorriso malicioso com que miava… “então é assim, meu tirano opressor…? é assim que domas as feras que ameaçam atacar-te, éhh…? …isso… … assim…ui que meeedo… o teu mosquetão está quasi, quasi pronto a fulminar-me… “
- Chefe ?! Vocemêce está bem? Eia, c’ um Camano ? Está branco o homem! Parece que viu alma do outro mundo, benza Deus ?

sexta-feira, outubro 13, 2006

Cap. 9 (Escrito por Sandra Franco)

Duas horas.
Duas horas de terra que cheirava a mofo, de impaciência e de indecisão: se no fundo do buraco estivesse o corpo, era mau, porque tinham de o ver. E um corpo de tantos dias, por mais agradável que tivesse sido em vida, não devia estar grande pitéu; se no fundo do buraco não estivesse o corpo, havia que procurar por ele. E, ora, como um cadáver tem pernas mas já não faz grande uso delas, havia que procurar também pelas pernas que tinham posto o corpo a andar.
Primeiro foi a pá que perdeu a cabeça e foi preciso ir procurar outra. Depois, as meninas da D. Isaura, que tinham sabido da notícia e acorrido em polvorosa, numa união inaudita com as beatas das redondezas, a gritar "Blasfémia!!Hereges!!";por fim o sol, aquele sol doentio típico da altura do ano, baixo e intenso, que fazia os homens pararem de escavar a cada passo para tirar o lenço da algibeira e limpar o suor da testa.
- Caramba, que diabo, homens, a terra foi remexida há dias, duas horas para destapar uma sepultura? - bramava Aníbal, também de lenço na mão.
- Tem de compreender, chefe, a pá perdeu a cabeça, demorou a encontrar outra, só aí perdeu-se um rôr de tempo!
Aníbal atirou a mão que segurava o lenço, num gesto de desprezo, e bateu o pé na terra macia.
- A perder a cabeça estou eu quase! Vamos lá acabar com isto! - resmungou novamente, entre uma fumaça de cigarro e mais um limpar de testa.
Abílio compreendia, assim como compreendia Aníbal, que não era só o calor nem o trabalho que os punha a suar; e compreendiam ainda melhor porque é que o "capitão", há última da hora, tivera um "imprevisto", um "assunto urgente", e ausentara-se...
Todos eram homens. Todos conheciam a Adelaide - senão em primeira "mão", pelo menos de ouvir contar; e todos a conheciam de vista. Ninguem estava com grande vontade de ver o corpo roliço onde tantas vezes tinham entrado - ou sonhado que entravam!-retalhado de há meia dúzia de dias.
E o cheiro - comentava um dos gatos-pingados, entre uma cavadela e outra, o cheiro é do piorio, parece de...
- Parece de coisas mortas, homens, que é do que é! Caramba, terei eu que ir ajudar a cavar? Não há é mais pás, senão onde é que esse buraco já ia! - reclamou Aníbal, o chefe, com ar de chefe e a mão do lenço a abanar.
Abílio olhou para ele pelo rabito do olho. O chefe a cavar. Se não estivesse tão nervoso, ainda lhe dava vontade de rir...assim, só lhe dava mesmo vontade de cavar, mas dali para fora!
Por fim ali estava. O caixão.
Debruçaram-se os quatro, um por cada lado da sepultura.
As rameiras e as velhas beatas tinham dispersado com medo de ter que assistir ao espectáculo. Benziam-se de longe, espreitando por entre as grades do cemitério, num misto de despeito envolto em devoção e curiosidade embrulhada numa morbidez secreta.
- Se o doutorzinho nos mentiu... - ciciou Abílio, de olhos fixos na tampa de madeira do caixão
- Pois olha que não sei o que é pior: que tenha mentido ou que tenha dito a verdade! - respondeu Aníbal,de mãos na anca, com um ar ausente. - Bem, vamos acabar com isto!
Um dos homens desprendeu os ferros que seguravam a tampa ao caixão.
Aníbal hesitou por momentos,de pá na mão; e de repente, num impulso único, lançou a pá para a frente, fincou as mãos com força, e com um rangido lamentoso, a tampa cedeu.
Silêncio.
Dentro e fora, o mesmo cenário: terra, apenas. O caixão estava cheio de terra.
Abílio soltou um assobiozinho involuntário.
- Bonito serviço...
Aníbal atirou fora o que restava da pirisca que ainda tinha entre os lábios.
- O doutorzinho afinal não mentiu. Vamos embora, Abílio.
- Oh chefe...tapamos isto? - perguntou um dos homens, numa voz entaramelada mal recuperada do assombro.
- Tapas o quê? Não vês que está vazio? Oh..! - respondeu, num assomo de impaciência. Era tal e qual o que tinha dito o Abílio: bonito serviço! - Vamos embora, vamos lá falar com o professor...


Abílio olhou em volta e juntou os lábios num assobio silencioso: o professorzinho não vivia mal de todo.
Não lhe invejava completamente a sorte - aturar maganos, desmamar meninos acabados de largar a saia da mãezinha, alguns com mais borbulhas que pelos na barba - não era vida de rei, nao senhor.
"Deixa lá que tu, Abílio, a rapar bêbados das ruas e a correr com pegas das esquinas, leva-la melhor!" - pensou de si para consigo, abanando a cabeça ao de leve.
Professor da faculdade, não devia ganhar mal; e para mais ainda tinha a loja de tecidos, herança de um tio. A clientela não era da alta, mas pagava - toda a gente sabia que ali se vestiam as "meninas" da D. Isaura; e dinheiro...não lhes faltava.
- Não vive mal, o homem... - comentou Aníbal, traduzindo em voz alta o que passava pela cabeça de Abílio.
- Parece que não, chefe! Não percebo para que precisa um homem assim...
O homem que surgiu por trás da porta parecia alarmado pela luz, como se tivesse acabado de descobrir que era dia.
- Bom dia. Queremos falar com o professor Reinaldo. - atirou Aníbal, com um ar autoritário, muito de polícia, muito de chefe.
- O professor está ocupado, não atende ninguém. - respondeu o homem, fazendo menção de fechar a porta.
- Vá dizer ao professor que está aqui a polícia e que quer falar com ele. Pode ser que lhe faça crescer um quarto de hora no relógio...
O homem deu meia volta e desapareceu dentro da casa, deixando Aníbal com um sorrisinho.
- Ora viste? É só dizer as palavrinhas mágicas...- disse o chefe, puxando por uma ponta do bigode com um ar de satisfação. Abílio riu, por simpatia, com as mãos atrás das costas e um saltinho de calcanhares, impaciente pela bazófia.

Mal o chefe Aníbal sabia com quem tinha acabado de falar...

sexta-feira, setembro 01, 2006

Cap. 8 (Escrito por Luísa Ricardo)

Reinaldo sentiu chegar o inútil empregado com uma mão entrapada e nem olhou para ele. O velho professor andava lívido, longe dos seus dias de alegria e vivacidade, alheado do que o rodeava, desde o dia horrível em que vira espantado e incrédulo aquele corpo mutilado.Porém, sem o mais leve estremecer de alma, experimentava uma leveza inexplicável e um alívio inesperado invadia-o quase com ternura, pacificando todos os tormentos. Sentia-se outro, apenas uma leve contrariedade marcava o seu presente.
- Tenho de começar...preciso de começar...mas aquela imagem não me sai do pensamento. Como se fora ainda a mais bela, a única e esmagadora imagem de sempre. Teima em me perseguir, quer invadir-me a vida, estrangular de pasmo o meu dia. E sob esse pasmo sepulcral nada posso fazer, nada avança e os livros desordenados sobre a secretária não me perdoam a inércia. Vou começar, digo a cada momento. É hoje, é hoje...mas ai, a contemplação do teu rosto ausente é cada vez mais impressiva e tolhe-me, sabes, tolhe-me os movimentos, qual amarra invisível impossível de desatar.
- Dr. Reinaldo... Dr. Reinaldo... desculpe... ! Desisto. Este hoje nem me ouve….
- Que é que este inútil quer? Só sabe bater com as portas. Já devia ter planificado o trimestre, até o ano todo, mas desconfio que este ano hei-de dar as aulas a martelo...Também, com os imbecis de alunos que me saem na rifa… Estou a ficar farto de tanto mentecapto. Como podem estas bestas chegar à Universidade? Lembrar que tive de prestar todas as provas com distinção... o Latim... saberão eles como lhes haveria de abrir as mentes aperreadas?! Cambada de energúmenos...
Não estava nos seus dias, de facto. Sempre soubera que um dia havia de acontecer o tumulto de há pouco. Qualquer avassaladora tragédia à medida de Adelaide, só dela.
" Não, não deves fazer isso. Repara nas implicações que tem". Respondias sempre que não te importavas e que a tua vida só a ti dizia respeito. Chegava a achar graça à tua rebeldia infantil. Havia sempre nas tuas atitudes uma provocação sem limites, como que a pedir contas a todos, e olhavas com desdém os que te rodeavam e se atreviam a sugerir que estavas errada. Como se não foras criança …
Mais tarde, já adolescente, crescias e tornavas-te uma bela mulher. Tão bela que me fazias corar. Pavoneavas-te pela casa toda, sem te ralares muito com o decoro. As empregadas até se queixavam de tal descaramento, que assim se iam embora, porque ali podiam ser confundidas com uma depravadas... Falava-te então, compreensivo, tolerante, amigo. Acatavas, prometias que não voltavas ao desacato, mas era sol de pouca dura. Aí estavas de novo na primeira oportunidade a revolver meio mundo com as tuas loucuras.
"Não sei que rapariga é esta", mortificava-se constantemente a tua mãe. “Por que há-de ela ser diferente das outras?" A perversidade e excentricidade cedo se tornaram as marcas mais vincadas do teu carácter e em pouco tempo toda a vila conhecia o teu génio. As primeiras vítimas eram os da casa mas começavam a aparecer queixas de todo o lado. Da rua, da escola...sim, da escola, e é claro que os primeiros namorados eram descartados a uma velocidade inadmissível para a época.
"Que fazer? Que fazer? Internar-te num colégio? Pobres freiras. Enfim, tentamos... " Por esta altura, alternavam em ti os períodos de soturnidade e uma energia desenfreada. Nada te amansava. Era então a época de nos pregares partidas. Desaparecias por largo tempo, escondias-te no campo, vinhas à noite, como animal escorraçado pelo escuro. Às vezes, arrependida, abraçavas-me e choravas copiosamente. Prometias mudar. Eu até acreditava. Diziam todos que era o culpado e que apenas a minha aquiescência era responsável por tais desarranjos. Opinavam que te devia bater, castigar, exigir...Menina, para o seu quarto, a pão e água, até resolver mudar, disse-te um dia! Ah, como me arrependi e me doeu...
Mas não havia saída. Fechava-se o aperto em volta do teu carácter e a inabalável decisão teve de ser tomada. No colégio, mantinhas toda a arrogância e provocação. Chegavam ecos da tua beleza extraordinária, dos caprichos que teimavas em manter e não tardou que fosses expulsa. Maior de idade, ficaste finalmente a teu cargo, não sem que isso tivesse efeitos desastrosos na saúde de tua mãe, que não aguentou tanto vexame e desgosto.
De repente, apareceste em Coimbra. Horror, horror, que fazer? Sentia então os meus dias como uma tortura, morrendo lentamente, suspeitando da tua vida e escudando-me na ignorância de todos sobre o nosso parentesco. Um cliente, seria um cliente a mais na tua vida!! A que vergonha me sujeitavas… e bela, meu Deus!, tão bela que contemplar-te fazia doer o coração. E ao mesmo tempo, pássaro enjaulado. O mundo era pequeno para a tua grandeza. Eu sabia-o! Eras superior e ninguém to perdoava. Eras diferente e o único eco que poderias dar dessa diferença era o íntimo impulso de hostilidade para todos nós, que …..
- Dr. Reinaldo…. Snr. Professor Reinaldo…. desculpe, mas é a Polícia… Insistem em falar-lhe…
- Já vou … já vou... Que foi que te aconteceu, imbecil? Caíste?

quinta-feira, agosto 31, 2006

Cap. 7 (Escrito por Carla Afonso)

Ele não sabe explicar a si próprio, porque é consigo mesmo que ele apenas e desde há muito já só fala, desde começou a ter a sensação de que a vida se lhe ia escapando como areia seca por entre dedos abertos.
Sabe, isso sim e bem demais, quando começou a sentir-se desintegrar, como que apodrecendo, a partir de dentro.
Lembra-se bem desse momento; recorda-se dele como de uma revelação.
Uma noite de insónia. Uma agitação febril. Uma inquietude que se foi instalando como um visitante indesejado que vem para ficar. A falta de posição na cama, o frio enregelante de um quarto mal aquecido nas húmidas águas furtadas do edifício antigo mais barato que encontrou em Coimbra.
Levanta-se então da cama para passar o rosto quente e transpirado pela água fria que tem na jarra do lavatório de ferro que constitui um dos seus poucos haveres.
Bebe um pouco, apesar do sabor já ferroso, olha-se ao espelho e mal se reconhece nas olheiras fundas que lhe sulcam a face de má cor.
É então que repara no sabão meio desfeito pela água depositada no fundo da improvisada taça que lhe serve de suporte. Também não sabe explicar porque viu nesse pedaço de sabão semi - liquefeito mais um sinal da desintegração eminente do seu próprio corpo. Sabe apenas que foi nesse momento, nesse milésimo de segundo que lhe viria a transformar os dias, que percebeu que tinha que fazer alguma coisa para estancar a sangria de vitalidade de que acredita estar a ser vítima. Nunca lhe passou sequer pela cabeça que a queda acentuada de cabelo, o eczema que lhe alastra na pele e a tosse persistente sejam devidos à má alimentação e à insalubridade do local que habita.
Nunca. Na sua visão simplista, lê isto como meros sinais de uma auto-derrocada eminente que ele tem que aprender a escorar.
Há muito que se sente confuso, dividido, à deriva. Pior que isso, desamparado num mundo estranho e hostil. A verdade é que a vida não lhe tem corrido de feição.
O patrão, um comerciante bruto e prepotente, já o repreendeu várias vezes pela demora e pela troca nas entregas dos tecidos às suas clientes. Quase todas de classe média; algumas delas, as rameiras de maior sucesso da casa da célebre D. Isaura.
Da sua terra natal foram chegando, através de cartas mal garatujadas que se afadigou a tentar ler com os poucos conhecimentos que lhe foram veiculados na sua infância de muito trabalho e pouco investimento no saber, ecos de que a saúde da mãe piorava todos os dias. A tuberculose não perdoa os pobres.
A noiva que deixou em terras serranas do interior já lá vão três longos invernos, cansou-se de acreditar no sonho alimentado por promessas regulares; o tempo não espera disse-lhe ela, e ela não lhe reservaria a mão e o resto do seu corpo pelo resto dos seus dias.
Com o António da Égua, viúvo abastado a precisar de criada para todo o serviço, a rondar-lhe a casa e o leito, o ultimato caiu nas mãos do homem e queimou-lhe o entendimento como ferro em brasa.
Ele ainda lhe pediu algum tempo, mas também este se esgotou sem que o pé-de-meia prometido se tivesse concretizado. A Amália dos seus amores casaria semanas depois com alguém capaz de lhe satisfazer, de uma só vez, as suas necessidades: casa, mesa e a possibilidade de ter os seus próprios filhos, preocupação constante das mulheres que sentem a fúria uterina da procriação. Pouco importou a Amália que o seu novo lar estivesse pejado com os retratos da defunta antecessora; que os pesados reposteiros tivessem sido escolhidos por ela e para ela e que os móveis da agora “sua” Quinta da Boavista lá tivessem chegado pela mão da outra, a mais temível das rivais por já ter desencarnado deixando atrás de si um exagerado rio de qualidades mitificadas, como acontece muitas vezes nestas coisas da viuvez.
O homem chorou até lhe não ser possível verter mais lágrimas; durante esse tempo transformou a sua dor em desamor, em raiva. Em ódio cego pelo sexo oposto. Até a sua virgindade, preservada religiosamente para a ofertar a Amália, na noite de núpcias, lhe doía agora como se da maior inutilidade se tratasse.
Há muito que ouvia falar, em surdina claro, nos dotes sensuais da puta Adelaide. Como se isso, por si só, não bastasse para lhe tentar as carnes, das últimas vezes que lá foi levar-lhe os cortes de tecidos vistosos com que encadeava depois uma horda de homens babosos e babados, ela sorriu-lhe despudoradamente. Como que a convidá-lo para as lides da cama.
E se a curiosidade de experimentar os prazeres ilícitos não se tinha tornado mais forte que a sua vontade férrea de a eles resistir, isso devia-se apenas ao respeito, sim porque era de respeito que se tratava, que tinha pela noiva e pela necessidade de poupar o máximo de dinheiro que fosse capaz.
Agora já nada disso fazia sentido e estava ansioso por se iniciar nos braços da rameira mais requisitada de uma certa Coimbra decadente.
Depressa viria a descobrir que a Adelaide seria impotente para o livrar da sua inexplicável impotência, mas o alvo perfeito para aplacar a sua fúria contra as mulheres.
Não sabe explicar porque a abriu de alto a baixo, a golpes de canivete, objecto que traz no fundo dos bolsos desde criança. Ou como foi capaz de o fazer, logo ele, que nunca foi capaz sequer de esventrar um porco.
Lembra-se vagamente de que ela, a tal Adelaide de sangue quente e pernas grossas, se riu do seu sexo ridículo, de tão murcho e envergonhado. Ria-se descontroladamente; como se, de repente, ela própria se tivesse dado conta de que os seus apregoados dotes não mereciam ter tal fama. Pois se nem o desejo de um virgem ela acendia!
O homem ainda tapou os ouvidos tentando não ouvir o que lhe pareceu ser uma suprema humilhação, mas não foi capaz. Tudo o que ele queria era que ela parasse de se rir dele. O homem vislumbrava nesse riso estridente as gargalhadas que imaginava que alguns dos seus conterrâneos tivessem dado no casório da sua amada. Odiosas gargalhadas dos invejosos que se sentem ressarcidos das suas pobres vidas, quando assistem de camarote à desgraça alheia.
Golpeou-a repetidamente e, passado o horror dos primeiros salpicos de sangue, foi descobrindo que a sua humilhação se desvanecia como nevoeiro numa manhã que teima em tornar-se ensolarada.
Mais do que isso; à medida que a via ir-se embora, apagar-se de vez, sentia-se gradualmente mais enérgico, mais palpitante, mais vivo; até a erecção que o tinha traído minutos antes, estava agora no seu pleno. Foi revigorado e sobretudo vingado que abandonou o local do crime. Por pouco não foi surpreendido por um outro cliente, ávido dos prazeres escondidos que por lá se compravam.
Nessa noite dormiu o sono dos justos, confortado pela sensação de que algo de profundamente visceral tinha sido curado dentro do seu próprio corpo.
Tinha que repetir a sensação de embriaguez que aquele inesperado episódio lhe tinha provocado.
Dias depois, voltaria à casa da D. Isaura disposto a tudo. A tudo, tudo, já não. Se a rameira que contratasse desta vez o não servisse como ele desejava e não lhe acordasse a virilidade em três tempos, não lhe daria qualquer oportunidade para eventuais gozos; pelo menos serviria para lhe curar a saúde.
Quando a Angélica, a mais digna sucessora da infeliz Adelaide, cruzou a porta do quarto onde tantas vezes se abriu para atender os clientes que a escolheram como se de um traço de carne se tratasse, estava longe de imaginar que tinha o seu destino marcado.
Confessou a uma colega de lides na casa mais frequentada da cidade que agora se sentia insegura e hesitante, mas a vida continuava e a ama dos dois filhos que mantinha afastados do seu vergonhoso dia a dia não se deixaria amolecer se a renda não lhe fosse entregue na data certa.
Para o homem, pouco lhe importou que ela fosse menos ardente, sim, mas mais paciente e doce que a sua defunta colega. Olhou-a, já nua, indiferente aos seios fartos e às ancas roliças que tantos outros homens gostaram de tocar sem cerimónias. Observou-a tentando contabilizar mentalmente a força vital que o sangue derramado dela lhe poderia oferecer.
A lâmina recém afiada do canivete de bolso atingiu-a primeiro no peito; entrou nele uma e outra vez, rasgando-lhe traiçoeiramente as entranhas. Ela ainda tentou gritar, mas ele era mais forte e tapou-lhe a boca, imobilizando-a com esse mesmo braço. Os gritos dela, se houve quem os tivesse ouvido, foram confundidos com os muitos que por lá se produziam, por razões bem diferentes da dor.
A Angélica, bem constituída e bem alimentada pelas iguarias trazidas pelos seus amantes mais generosos, tentou defender-se do selvático ataque empurrando o agressor contra os móveis. O homem não estava à espera de reacção, desequilibra-se e cai, trespassando a sua própria mão. O corte, fundo e feio, sangrou abundantemente. A visão do seu ferimento, enlouqueceu-o de raiva.
A estocada final teve como destino o coração, que ele depois faria questão de extirpar e lançar, como banquete, aos ratos. Angélica foi enfraquecendo e não teve tempo de ver que o brilho dos olhos do seu carrasco se foi tornando mais forte à medida que a sua erecção crescia.
Antes de abandonar o local, saltando, mais uma vez, para os telhados vizinhos através da janela do primeiro andar, o homem pendurou cuidadosamente as roupas da sua vítima numa cadeira. Por ordem. Primeiro a saia, grossa de folhos; depois a blusa rendada e casaquinho de lã; só depois o saiote, a combinação, as cuecas de pano e as meias de elástico.
No parapeito da janela de guilhotina com pequenos vidros, brilha um arrepiante rasto de sangue que se prolonga pelas telhas mais próximas.
O homem está eufórico; amanhã pensará na desculpa que vai ter que apresentar ao seu patrão, quando este o vir chegar com uma mão entrapada.
No chão do quarto, o mar de sangue mostrará, a quem lá chegar primeiro, a ferocidade do assassínio.

domingo, agosto 27, 2006

Cap. 6 (Escrito por Jorge Roque)

- Isto está cheio de pontas soltas, chefe. - resmuneou Abílio encostado à secretária do chefe.
- Então temos de começar a uni-las, rapaz. Não achas? - rematou o chefe, Aníbal Cavaco, inalando o tabaco barato para que tinha posses, refastelado na cadeira com os pés em cima da secretária. - O que é que sabemos?
- Muito pouco, chefe, muito pouco. - lamentou-se enquanto sorvia o fumo do tabaco expelido por Aníbal, à falta de verba para fumo seu.
- Recapitula, Abílio, recapitula - insistiu o chefe - que caso este.
- Se o chefe insiste... Ora bem, - desencostou-se da secretária e começou a andar de um lado para o outro, enumerando com os dedos - uma prostituta de nome Adelaide foi brutalmente assassinada na madrugada do passado Sábado para Domingo. Ninguém testemunhou o crime. As duas pessoas que descobriram a vítima já foram interrogadas. Uma prostituta do estabelecimento que acompanhava um estudante de medicina ao quarto da Adelaide. Parece que era famosa essa Adelaide.
- Bem sei - deixou escapar o chefe, para logo corrigir atabalhoadamente, - quer dizer...já ouvi falar... Alguns rapazes aqui do posto vão lá.
Abílio ignora a atrapaçhação do chefe e prossegue. - Esses dois eram uns tais de Angélica e Mário Mendonça.
- Respectivamente. - Completou o chefe dando mais uma passa sôfrega no cigarro que mantinha um enorme fio de cinza precariamente equilibrado nas mãos dele.
- Exactamente. A puta...
- A dona Angélica - interrompeu o chefe.
- A dona Angélica estava em estado de choque, completamente catatónica...
- O que quer dizer isso?
- Não sei. Foi o que disse o médico.
- Claro, claro. Catatónico. Já sei que estado é. A minha sogra costuma ter desses achaques. Fica meses sem falar, graças a Deus.
- Sorte a sua, chefe. Bem precisava de uma sogra assim. Continuando, a dona Angélica nada disse, devido a esse facto. O estudante, o tal Mário Mendonça foi de grande ajuda. O corpo tinha o ventre completamente esventrado e o coração foi retirado e colocado numa bandeja na mesinha de cabeceira. Também o útero foi removido, mas não se encontrou. Apesar de tudo isso há um factor curioso.
- E qual é? - O chefe mirava o enorme fio de cinza que pendia do cigarro.
- A roupa dela não tinha uma pinga de sangue e estava imaculadamente dobrada numa cadeira.
- Interessante. Nem uma pinga de sangue?
- Nem uma.
- Estamos aqui perante um assassino que por um lado abre o corpo todo e por outro gosta de organização.
Abílio ouvia atentamente o raciocínio do chefe na esperança que aquilo levasse a algum lado, mas Aníbal não disse mais nada.
- Entretanto, parece que não se encontrou mais nada de relevante na mansão da Dona Isaura que reabriu ontem.
- Mansão? - inquire o chefe admirado.
- Sim. Este caso era do Moreira, que entretanto foi transferido para outra comarca, eu nunca lá fui. Disse-me que era uma mansão. Aqui está na compilação do caso, pode ver, - Abílio mostra um molho de papéis ao chefe e aponta. - Está a ver? Esta adenda, pagina 13 do capítulo 5. Ontem até serviram champanhe de borla e as mulheres foram de graça.
O chefe levantou-se com os papéis na mão. - O Moreira é um cabrão.
- Então porquê, chefe?
- Sempre me quis lixar. Temos de conferir todos estes factos novamente. Vamos fazê-lo nós os dois, sem interferências exteriores.
- Não estou a perceber, chefe.
- Ó rapaz, o bordel da dona Isaura é um barraco e não uma mansão. Aquilo tem três andares a cairem de podres. E o champanhe era zurrapa. Do pior que já bebi.
Um silêncio constrangedor baixa sobre a sala do posto de polícia durante alguns momentos.
- Ora bolas, chefe. Então temos de nos pôr a andar. Daqui a nada o Casimiro chateia-nos a pinha. Quer resultados.
É nesse momento que entre Casimiro, o mais graduado da cidade de Coimbra, resposável pela baixa taxa de criminalidade. Pelo menos enquanto não a contabilizarem pode sempre gabar-se disso. Gosta de que lhe chamem capitão.
- Então Aníbal. - cumprimenta com um vozeirão. - Há novidades?
- Ainda não, capitão. Recebi o caso ainda há bocado.
- Preciso de resultados rapidamente. Tenho o governador em cima de mim. Mas isto está a complicar-se.
Aníbal e Abílio entreolharam-se.
- Como assim, capitão? Há algum problema?
- Está lá fora o estudante, o Mendonça.
- O que a encontrou?
- Esse mesmo. Diz que o prenderam há quatro dias numa barraca depois de o terem agredido, mas conseguiu escapar-se. E na terça-feira viu um professor lá da faculdade levar o corpo da defunta numa carreta, mas não sabe para onde.
- Mas ela não foi enterrada na segunda? Veio no jornal.
- Foi. Eu estive lá. - assumiu sem rodeios. - Vamos ter de exumar o corpo. Ver se está lá ou é delírio.
- Isto está mesmo complicado. - desabafou Abílio.
- Vamos recolher já o depoimento dele. Temos de ver que professor é esse e quem o prendeu. - afirmou Aníbal. Depois inquire pensativo - Ouça lá, porquê que ele levou tanto tempo a vir cá?
- Parece que esteve a fazer investigação por conta própria. - Informou o capitão. - Saquem-lhe a informação toda.
Nesse instante um homem entra a correr no gabinete.
- Capitão! Capitão! - grita esbaforido.
- Que foi homem? - perguntou no mesmo tom. - Acalme-se que lhe saem os bofes pela cara.
- Mataram outra.
- Mataram outra quê?
Os três homens alarmaram-se.
- Outra meretriz, capitão.
- Ora bolas - deixou escapar Abílio.
Os três homens olharam-se e depois o capitão Casimiro olhou para o portador da notícia.
- Sabe quem era?
- Dizem que se chamava Angélica.

sábado, agosto 26, 2006

Cap. 5 (Escrito por André Coelho)

“‬Eu conheço essa voz‭” – ‬pensou Mário ainda antes de abrir os olhos.‭ “‬Onde estou‭? ‬Que sítio é este‭? ‬Está tudo escuro‭… ‬não vejo nada.‭” – ‬continuou ele num raciocínio lento e intermitente.‭ ‬Estava no máximo das suas capacidades.‭ ‬Tentou mexer-se para se levantar e então percebeu que lhe era impossível.‭ ‬Com a cabeça a estourar,‭ ‬tentou de novo.‭ ‬E nada.‭ ‬Tentou outra vez e o máximo que conseguiu foi arrastar levemente a cadeira,‭ ‬o que provocou um rangido de um soalho velho e invisível.‭ ‬Aí,‭ ‬as vozes que escutava vagamente ao longe deixaram de se ouvir durante uns momentos para aquela que,‭ ‬de alguma forma,‭ ‬sentia ser-lhe familiar prosseguir:‭ “‬Que foi isto‭? ‬Vou lá dentro ver o que se passa.‭” ‬Mário voltou a abandonar a cabeça do corpo,‭ ‬deitando-a para trás,‭ ‬suspensa nas costas da cadeira,‭ ‬e a porta abriu-se.‭ ‬Em contraluz apareceu-lhe em frente o vulto de um homem com os pés bem firmes naquele chão solto e com as mãos caídas de uns braços que mais pareciam as de um pistoleiro em pose para sacar a arma do coldre.‭ “‬Quem é este tipo‭? ‬Onde é que já vi aquela cabeleira despenteada‭? ‬Ai,‭ ‬a minha cabeça‭…” ‬sofreu Mário imóvel e de olhos semicerrados.‭ ‬Depois de se certificar que tudo continuava na mesma,‭ ‬o vulto voltou-lhe as costas vociferando no seu timbre de voz característico:‭
-‭ ‬Malditos ratos‭! ‬Começo a ficar farto deste lugar.
Ao bater da porta,‭ ‬Mário respirou fundo de alívio enquanto a sua cabeça começava a querer subir à tona.‭ ‬Esperou que a conversa do outro lado recomeçasse para ele,‭ ‬por sua vez,‭ ‬recomeçar também a tentar livrar-se da situação em que estava.‭ ‬Começou por mexer as mãos e,‭ ‬com surpresa,‭ ‬notou que não estavam tão presas quanto os pés.‭ ‬Motivado pelo brinde inesperado,‭ ‬continuou a rodar os pulsos e a tentar afastar as mãos para aliviar a tensão do nó que cada vez mais lhe parecia mal dado.‭ ‬Parou por segundos de gesticular e veio-lhe à cabeça,‭ ‬ainda dorida mas cada vez mais determinada,‭ ‬uma noite especial que havia tido com a falecida.‭ ‬A noite em que ele realizou a sua maior fantasia da adolescência.‭ ‬A noite em que Mário convenceu a Adelaide a deixar prender-lhe as mãos atrás das costas para assim se demorar num delicioso festim de prazeres contínuos e inesquecíveis.‭ ‬Depois de a ter levado,‭ ‬com mestria,‭ ‬a seis orgasmos estridentes que se revelaram por ser‭ “‬Dos melhores que já tive na vida‭”‬,‭ ‬tal como ela lhe confidenciou já de cigarro na mão,‭ ‬o que para a rodagem de Adelaide,‭ ‬foi um elogio e peras,‭ ‬como nenhum outro,‭ ‬e que,‭ ‬por isso,‭ ‬lhe elevou a sua prezada auto-estima masculina a um estado de confiança luxuriante,‭ ‬daí para a frente sempre comprovada por todas as outras mulheres com que Mário se deitou.‭ ‬E quando Mário se preparava para lhe introduzir naquela rata escancarada de um desejo em delírio a banana voluptuosamente bem escolhida e guardada para esse momento,‭ ‬uma das mãos de Adelaide sacudiu esse fruto proibido para com a outra apanhar de surpresa o mastro embandeirado de prazer de Mário e metê-lo,‭ ‬ela,‭ ‬bem lá dentro dizendo-lhe:‭ “‬É a ti que eu quero.‭” ‬Ao segundo cigarro,‭ ‬Mário perguntou-lhe como conseguira ela fazer aquilo,‭ ‬ao que Adelaide respondeu,‭ ‬confiante:
-‭ ‬Mesmo que não o diga,‭ ‬uma mulher sabe sempre quando um homem já foi às putas.‭ ‬E esse nó que tu me deste,‭ ‬só uma puta to podia ter ensinado a fazer.‭ ‬São todos iguais e para os desatar,‭ ‬basta puxar ao mesmo tempo pelas duas pontas.
Naturalmente excitado pela descoberta,‭ ‬Mário assim o fez e,‭ ‬em três tempos,‭ ‬estava em pé enquanto seguia,‭ ‬concentrado,‭ ‬a conversa dos outros,‭ ‬do outro lado da porta.‭ ‬Olhou em redor e atrás de si reparou nas pedras da calçada que uma luz ténue e distante de um candeeiro de rua lhe anunciava,‭ ‬à socapa,‭ ‬pela janela.‭ ‬Antes de dar um passo,‭ ‬mediu a distância até à janela e num salto atirou-se através dela,‭ ‬quebrando-a num chinfrim nocturno para acabar no chão da rua,‭ ‬em pleno caminho para a liberdade.‭ ‬Já a desaparecer da esquina,‭ ‬a correr pela vida,‭ ‬ainda ouviu a mesma voz masculina a gritar:‭ “‬Foda-se.‭ ‬O gajo fugiu.‭”

Ainda atordoado com os recentes acontecimentos,‭ ‬Mário acordou no dia seguinte já atrasado para o exame de Anatomia onde chegou mesmo em cima da hora,‭ ‬ainda a tempo de pedir a folha de exame ao Professor Reinaldo.‭ ‬Mário fitou-o enquanto o outro lhe entregava o teste,‭ ‬a sua cara,‭ ‬subitamente,‭ ‬parecia outra.‭ ‬A de um assassino com dupla personalidade.‭ “‬Será ele o nosso Dr.‭ ‬Jeckill e Mr Hyde‭?”‬,‭ ‬questionou-se ao mesmo tempo que lhe agradecia cabisbaixo o formulário.
Duas horas mais tarde,‭ ‬e profundamente esgotado pelo exame que não conseguira fazer,‭ ‬Mário estava já sentado noutra cadeira,‭ ‬fazendo a prova que mais lhe era habitual,‭ ‬a de um fino gelado na cervejaria do costume,‭ ‬a do Libório.‭ ‬À sua volta estava a gente de sempre:‭ ‬o Guima,‭ ‬o pintor envelhecido por uma cegueira galopante,‭ ‬à conversa com um par de estudantes veteranos,‭ ‬outros‭ “‬morcegos‭” ‬sentavam-se mais lá ao fundo e,‭ ‬à sua frente,‭ ‬uma mesa de miúdas castiças.‭ ‬Todos eram atendidos pelo mesmo empregado de há trinta anos,‭ ‬o sôr Freitas,‭ ‬um cinquentenário que preferiu as conversas de café às do entre o deve e o haver que lhe contabilizavam a vida antes do casamento.‭ ‬Bastou ao Mário perguntar-lhe‭ “‬E então‭? ‬Novidades‭?”‬,‭ ‬que o sôr Freitas,‭ ‬o principal ardina da cidade,‭ ‬desbobinou logo:‭
-‭ ‬Olhe amigo,‭ ‬então não é que a casa de putas da Isaura vai reabrir na próxima sexta‭?

-‭ ‬Já nesta sexta‭? ‬-‭ ‬perguntou Mário incrédulo a tentar ganhar tempo para perceber o que se estava a passar.

-‭ ‬É como lhe digo‭! ‬Neste país,‭ ‬quem tem amigos ricos não morre na prisão.‭ ‬-‭ ‬sentenciou o sôr Freitas abandonando revoltado o fino na mesa já com o ouvido experimentado num‭ ‬pssst‭!‬ chegado da mesa em frente.
‭“‬Realmente‭!”‬,‭ ‬pensou Mário dando um gole lento na cerveja cheia à pressão,‭ “‬como a frieza empírica deste homem põe a nu a verdade dos factos.‭ ‬A vida,‭ ‬para muitos,‭ ‬é um professor cruel mas eficaz.‭”

E na sexta-feira seguinte lá estava o Mário com os seus colegas à entrada da‭ “‬Isaurinha‭”‬,‭ ‬como entre eles era conhecida‭ ‬a casa de putas.
O ambiente estava estranho.‭ ‬Tudo se parecia com a reabertura do cabaret da moda.‭ ‬Havia um porteiro,‭ ‬neste caso,‭ ‬uma porteira,‭ ‬a Dona Fátima,‭ ‬que como todos os porteiros tem um nome conhecido por toda a gente,‭ ‬a seleccionar os mais ilustres entre os magotes de pessoas que se juntavam à porta,‭ ‬entre elas alguns improváveis notáveis da cidade que se misturavam num colectivo maioritariamente masculino já que os prazeres reconhecidos à casa piscavam também algum olho à ala feminina da sociedade.‭ ‬Do interior,‭ ‬sentiam-se lentas luzes discretas a condizer com‭ ‬belles chansons francaises que compunham como nenhumas outras a atmosfera.
Mário,‭ ‬um desses ilustres clientes da casa,‭ ‬viu de imediato o seu passaporte reconhecido e entrou,‭ ‬juntamente com os seus amigos para o ex-local do crime.‭ ‬Lá dentro foi de imediato recebido pela anfitriã,‭ ‬a Dona Isaura,‭ ‬que,‭ ‬ainda com um ar,‭ ‬como dizer‭?‬,‭ ‬combalido pelo sucedido,‭ ‬o recebeu com saudades,‭ ‬abraçando-o ao mesmo tempo que pousava o cabeça no seu ombro.
-‭ ‬O espectáculo tem de continuar‭ ‬-‭ ‬segredou-lhe ela tentando justificar-se,‭ ‬convencendo-o com a confortável noção de que o tempo acaba sempre por curar tudo.
-‭ ‬Enfim,‭ ‬o que lá vai,‭ ‬lá vai‭… ‬-‭ ‬continuou,‭ ‬erguendo com pêsames a cabeça para em seguida oferecer ao grupo um copo do champanhe habitual,‭ ‬convidando,‭ ‬sorrindo:
-‭ ‬Hoje,‭ ‬as meninas são por conta da casa‭! ‬Aproveitem.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Cap. 4 (Escrito por Mónica Almeida)

O funeral de Adelaide da Conceição, realizou-se ontem, segunda-feira, 13 de Fevereiro de 1905, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.

Fechou a porta da pensão com cautela e seguiu em direcção ao baile que havia junto ao coreto.
-Merda! – de súbito, o céu foi iluminado pelos relâmpagos e a gritaria estridente das gotas de uma chuva tempestuosa parecia furar-lhe os tímpanos. Sem chapéu alto ou casaca, olhou em redor, em busca de um abrigo. Refugiou-se na entrada da Igreja, a casa de um Deus que na noite de Domingo abrira as portas ao putedo de Coimbra para celebrar o velório de Adelaide.
Os minutos passavam e à porta do templo cristão, Mário tiritava de frio. Pensava nos seios leiteiros da prostituta que acabara enterrada sem coração. E o Doutor Reinaldo, presente naquele instante de ressurreição... será inconveniente falar-lhe amanhã, depois da aula?
Perdido nos próprios pensamentos não deu pelo aproximar de um vulto que saía da Igreja. Ao longe, alguém corria, apressado, tentando fugir à brutalidade da trovoada. À medida que o ruído dos passos se aproximava, reconheceu o rosto aterrorizado de dona Isaura, que veloz, parecia apontar na sua direcção.
- Pelo amor de Deus, não! Menino Mário, fuja! Fuja! – o jovem levantou-se, tentando compreender o que lhe gritava a assustada meretriz e nesse momento perdeu os sentidos, atingido por um vaso atrevido e pesado que alguém lhe enterrara, com força, na nuca.
- Até breve, Dr. Mendonça – ouviu-se então.

Teu coração não palputa
Triste puta assassinada
Tanto prazer e gosto
Para acabares assim estripada...

Dois jovens tocavam viola enquanto um grupo de rapazes improvisava a nostálgica cantata. Beatriz choramingava na cadeira do canto.
- Que ordinários! Ainda brincam com a morte da desgraçada...
- Oh Bia, não sejas piegas, estamos aqui para nos divertir! – e Carolina, fazendo-lhe um carinho fraternal, observava os rapazes com interesse – estranho o Mário ainda não ter chegado...
- O Mário! O Mário! Bem sei que andas perddida de amores pelo doutorinho!
- Eu? Deus me livre! Nem que me aparecesse à janela eu lhe dava atenção...
- Ora muito boas noites, senhoritas!
Zé Onório, enrolando as pontas do bigode, cumprimentou as raparigas com uma vénia ligeira e voltou-se para Beatriz:
- Concedei-me o prazer de uma dança ao ritmo desta canção!
- Não me parece que o momento seja oportuno, José... – reclamou, olhando de lado para a mãe que a fitava com desdém.
- Não aceito um não como resposta – e sério, estendeu-lhe a mão – tenha a gentileza.
Carolina observou as saias amarrotadas da amiga a serem puxadas para a dança por aquele matulão cambaleante. Tão lindo e ruim... e um ciúme ligeiro invadiu-lhe o âmago. Traidora! Desde que entrou na Universidade parece uma cortesã! Empenhada nestas conquistas baratas, que vergonha! Doutora da vida, é o que é! Amiga da puta, o Diabo a tenha, que a mim ela não engana! Com pena da morte de uma destruidora de lares... p’ráquilo!!! E com desdém contemplava o espectáculo da dança do par, próximos, quase mesmo amantizados, mesmo nas barbas da mãe. Que indecência!
- Bia, não tolero tanta incerteza! – o estudante fixava a amada – parto esta noite para Lisboa. Vens comigo!
- Estás doudo! – e a rapariga tombou – que seria de minha vida? Sabes da minha condição!
- Não me importa! Sem a Adelaide não há quem nos valha!
- Pois te digo que para mim, Deus a tenha, só agradeço aos pobres bichos que lhe roeram o coração... é da forma que não leva as minhas dores para o céu...
- Ou para o fundo da terra, que os anjos não têm sexo!
Escandalizada, Beatriz recuou:
- Como ousas, grosseirão?
- A tua inocência perturba-me, amor, ambos sabemos o alívio que esta desgraça nos trouxe... pelo menos não nos descobre a situação! Já não temos testemunhas...
E erguendo a moça para o lado, fez uma vénia e aplaudiu a canção.
Preparando-se o homem da gaita para tocar, a amante ainda perguntou “que fuga planejas, amor?”, mas a resposta foi interrompida pelo punho erguido do Manelito, que embriagado, se lançou ao nariz de Onório:
- Esta é pelas aias maviosas, sacana!
Entre sangue, pontapés, socos e uivos, a mãe da universitária arrastou-a por um braço. Haja decência! Apesar de se saber em beneficiada situação, a rapariga temeu a severidade da tutora. Apesar da sua educação liberal, assomava-se um castigo medonho.

Onório! Onório! Vais-te e eu, que me resta nesta desgraçada situação?
O jovem, caído por entre as pisadelas dos borrachos que se espancavam, nem tão pouco a vislumbrou. Ao lado, Carolina sentia-se de certa forma vingada mas lá nas suas profundezas era Mário que lhe causava aflição. Onde estás, Mário? Onde estás? E de braços colados aos da mãe ambas as amigas fungavam, sem motivo aparente.

Mário acordou amordaçado, de mãos e pés atados a uma cadeira.
Doía-lhe a cabeça, como se vitimado pela maior ressaca da vida. Em redor, escuridão. Ao fundo, umas vozes sussurravam...

quinta-feira, agosto 17, 2006

Cap. 3 (Escrito por Luísa Peres)

A mente de Mário via e revia todos os acontecimentos a que assistira na madrugada de sábado. Tudo aquilo o inquietava. Não o corpo aberto, como terceiranista, já tinha visto alguns, mas o mistério que envolvia aquela morte.
Quem fizera aquilo? Talvez algum cliente. Mas que cliente? Eram muitos aqueles que tinham Adelaide como preferida. E porquê? Com certeza não seria por não ter gostado do serviço. Adelaide, como nenhuma outra, sabia agradar um homem.
Mário sentia necessidade de solucionar aquele mistério, de saciar a sua curiosidade.
-Mário, Dr. Mário Mendonça? - quem chamava era o professor Reinaldo.
-Sim, desculpe... - respondeu Mário ainda aturdido.
-Não lhe agrada o tema da aula de hoje? Ou a minha exposição está demasiado enfadonha? - perguntou o professor com um sorriso nos lábios. Sabia que as suas aulas eram tudo menos enfadonhas, caso contrário o anfiteatro não estaria sempre cheio.
Mário sorriu constrangido. Nada respondeu, sabia que as perguntas eram de retórica e usadas apenas para o despertar.
O resto do dia correu com normalidade. As aulas terminaram às três da tarde. No dia seguinte tinha exame, mas não se sentia com cabeça para se entregar aos livros. Nem com disposição para um estudo em grupo na biblioteca da universidade. Optou por ir dar uma volta para espairecer. Quando saiu para o exterior sentiu um frio cortante que, com um gesto automático, o levou a traçar a capa do traje académico. O céu parecia querer desabar. Se não soubesse as horas, diria que o dia estava a findar.
Deambulou pelas quelhas e vielas da cidade, sem destino, até que deu por si nas imediações do bordel de D. Isaura. Diminuiu o compasso dos passos até se deter. Em frente à casa encontrava-se parada uma carreta. Mário permaneceu imóvel durante algum tempo. Tudo aquilo lhe parecia estranho. Os colegas tinham comentado que a casa tinha cessado os seus serviços, por tempo indetermidado. D. Isaura colocara mesmo a hipótese de não voltar abrir a porta. Nem outras coisas.
Que se passaria ali? Mal Mário formulou mentalmente esta questão, viu dois homens transportarem, com alguma dificuldade, um embrulho comprido, envolto num plástico preto. Logo de seguida surgiu D. Isaura acompanhada de um homem. Era dificil não a reconhecer, mesmo àquela distância. O homem que a acompanhava também não lhe era de todo estranho. O padrão do casaco que usava era-lhe familiar.
- É o professor Reinaldo. - Sussurrou Mário, surpreendido. Não havia dúvidas. Que fazia ele ali?
Mário aproximou-se um pouco mais. Mas voltou a parar repentinamente. Pálido, segurou-se a um candeeiro de rua. Ao colocarem o embrulho negro na carreta, umas das pontas desdobrou-se deixando entrever um rosto. Aquilo que eles transportavam era um corpo. Era Adelaide.
Num gesto automático, Mário rodou os calcanhares e fez o percurso inverso, desta vez com um passo muito mais rápido. Pelo caminho recordou-se da conversa que tivera com alguns colegas. Tinham estado presentes na casa de Isaura, no dia seguinte ao sucedido. Queriam prestar uma última homenagem à mulher que lhes deu a conhecer novos prazeres, que jamais esqueceriam. Será que o funeral não tinha acontecido?
Mário entrou com pressa na pensão onde residia. Na sala de convívio encontrou aquilo que procurava. O Jornal de Coimbra. Rapidamente localizou o artigo que pretendia: Coimbra ainda murmura os acontecimentos do último fim de semana. As informações são escassas, mas tudo indica que foi um crime premeditado. Muitas são as teorias que surgem. O funeral de Adelaide da Conceição, realizou-se ontem, segunda-feira, 13 de Fevereiro de 1905, na Igreja de....

peres.luisa@gmail.com

domingo, agosto 13, 2006

Cap. 2 (Escrito por Rui Martins Borges)

Lá em baixo, ninguém ligou aos gritos de tão habituados que estavam a ouvi-los por tudo e por nada. Os homens continuavam a cortejar as putas e elas o seu dinheiro à medida que se sentavam ao seu colo e pediam ao empregado de balcão garrafas e mais garrafas de champanhe.
Mário, o terceiranista, tapou os olhos àquela que o acompanhava. Ela entrou num profundo estado de choque ao ver Adelaide nua, coberta por um imenso cobertor de sangue. Apesar disso, o cliente estudantil mandou-a descer para avisar Isaura do sucedido. Com as mãos trementes agarrava-se ao corrimão enquanto descia lentamente os degraus de madeira podre. O corrimão coberto de ferrugem era tão frágil que dava sinal de poder cair a qualquer momento.
Mário manteve o olhar fixo na consternada mulher que gemia a cada passo que dava. Então, rodou novamente o olhar para a mulher ensanguentada, deitada na cama. Mirou em redor e nas paredes viu os claros traços das pedras na parede. A tinta estalou já há muito tempo e as infiltrações eram constantes. Os ratos eram uma visita indesejada que, naquele momento, se encontravam à volta do corpo atraídos, talvez, pelo cheiro do sangue. No chão escuro, várias garrafas de vinho estavam caídas. Todas vazias. Em cima de uma mesa-de-cabeceira, uma travessa de prata barata, certamente oferecida por um nobre, continha peças de fruta e carne. Os ratos banqueteavam-se. O aspirante a médico aproximou-se da cama e inspeccionou a travessa… Reconheceu algo nela, mas tinha medo de admiti-lo. Fitando os roedores, acocorou-se e concentrou-se. Finalmente reconheceu o objecto que servia de alimento e vomitou ajoelhado, apoiado numa mão. Limpou a boca e levantou-se. Levou os olhos ao peito aberto de Adelaide, confirmando o que vira na bandeja. O coração fora removido…
Os seus olhos encaminharam-se para uma cadeira. Nela estavam as roupas da rameira impecavelmente dobradas, sem uma nódoa de sangue. Dirigiu-se a elas, mas não lhes mexeu e o seu olhar confuso voltou-se novamente para Adelaide. Ouvia as pessoas a subirem as escadas aos berros e em passo apressado. Olhou intrigado para a expressão da vítima, que parecia estar descontraída, quase sorrindo com o cabelo cuidadosamente escovado cobrindo os ombros.

quarta-feira, junho 21, 2006

Cap. 1 (Escrito por Luís Miguel Rocha)

Da cidade dos estudantes brota uma validez social, política e cultural desde tempos imemoráveis, perdidos na história, quando Coimbra ainda nem isso se chamava e tinha outro nome qualquer. O fado conquistou o seu lugar e é comparável aos outros, se é que há mais do que um e as suas Faculdades de Medicina e Direito, as mais prestigiadas do país, cativam trabalhadores de carteira e guias turísticos de livros escolares de todos os cantos do Império.
É comum ver-se nas quelhas e nas vielas e nos becos a enraizada cultura estudantil rica em atritos, chutos, pontapés e leis de praxe que alteram os seus decretos ao sabor da quantidade de álcool ingerida. E se com pouco é lei um aluno caloiro, como se chamam aos desbarbados, andar nu a tentar equilibrar um pau de marmeleiro no queixo, com muito é natural ver o doutor a cascar no novato com o marmeleiro até perder os sentidos, um ou outro. Um dos pontos preferidos de emborque, dos estudantes maiores que não se misturam com a ralé, é a Cervejaria Libório, na Rua Direita. Todos os dias há que levar e contar, espalhados pelas mesas ou no balcão a beber e a falar e a beber, ou a falar e a beber e a beber, tudo o que tenha álcool, copo grande, pequeno ou pela garrafa, a sede é sempre muita e o calor desidrata apesar de ser noite e estar a chover.

Porém, nada disso é regra nesta noite fria na Cervejaria Libório. Os jovens universitários não vêm munidos da alegria das outras noites, nem tão pouco da mesma vontade de beber. Sussurram de uns para alguns, como se contassem algum segredo sobre o macabro acontecimento do fim de semana passado.

Às quatro da manhã de Sábado havia ainda animação na casa da puta Isaura, local onde muitos dos futuros médicos e advogados acabam por pernoitar. Alguns devem mesmo perguntar-se se alguma vez dormiram no quarto alugado pela família da Capital e outros nem devem saber onde fica. O cheiro a mijo é o aroma da casa, imperceptível após uma mão cheia de visitas ou uma noite bem regada. Dona Isaura é mulher de grande asseio, alta, gorda e um buço que se assemelha a um bigode.

Nessa noite correu bem o negócio até que um dos últimos noctívagos em busca de prazer, um terceiranista do curso de Medicina, entra no estabelecimento comercial. Escolhe a Adelaide, uma das mais célebres putas de Coimbra. Paga e é conduzido ao quarto da donzela no segundo andar. Quando entra descobre-a deitada na cama toda aberta, não na esperança de ser penetrada, mas esventrada de forma brutal, tipo lição de anatomia. A barriga estava com as peles abertas para os lados em forma de exposição. Toda a parte genital tinha desaparecido. O terceiranista não passou da porta e assim que a jovem que o acompanhou coloca os olhos desinteressados em tal selvajaria um grito ecoou pela casa inteira.