sábado, agosto 26, 2006

Cap. 5 (Escrito por André Coelho)

“‬Eu conheço essa voz‭” – ‬pensou Mário ainda antes de abrir os olhos.‭ “‬Onde estou‭? ‬Que sítio é este‭? ‬Está tudo escuro‭… ‬não vejo nada.‭” – ‬continuou ele num raciocínio lento e intermitente.‭ ‬Estava no máximo das suas capacidades.‭ ‬Tentou mexer-se para se levantar e então percebeu que lhe era impossível.‭ ‬Com a cabeça a estourar,‭ ‬tentou de novo.‭ ‬E nada.‭ ‬Tentou outra vez e o máximo que conseguiu foi arrastar levemente a cadeira,‭ ‬o que provocou um rangido de um soalho velho e invisível.‭ ‬Aí,‭ ‬as vozes que escutava vagamente ao longe deixaram de se ouvir durante uns momentos para aquela que,‭ ‬de alguma forma,‭ ‬sentia ser-lhe familiar prosseguir:‭ “‬Que foi isto‭? ‬Vou lá dentro ver o que se passa.‭” ‬Mário voltou a abandonar a cabeça do corpo,‭ ‬deitando-a para trás,‭ ‬suspensa nas costas da cadeira,‭ ‬e a porta abriu-se.‭ ‬Em contraluz apareceu-lhe em frente o vulto de um homem com os pés bem firmes naquele chão solto e com as mãos caídas de uns braços que mais pareciam as de um pistoleiro em pose para sacar a arma do coldre.‭ “‬Quem é este tipo‭? ‬Onde é que já vi aquela cabeleira despenteada‭? ‬Ai,‭ ‬a minha cabeça‭…” ‬sofreu Mário imóvel e de olhos semicerrados.‭ ‬Depois de se certificar que tudo continuava na mesma,‭ ‬o vulto voltou-lhe as costas vociferando no seu timbre de voz característico:‭
-‭ ‬Malditos ratos‭! ‬Começo a ficar farto deste lugar.
Ao bater da porta,‭ ‬Mário respirou fundo de alívio enquanto a sua cabeça começava a querer subir à tona.‭ ‬Esperou que a conversa do outro lado recomeçasse para ele,‭ ‬por sua vez,‭ ‬recomeçar também a tentar livrar-se da situação em que estava.‭ ‬Começou por mexer as mãos e,‭ ‬com surpresa,‭ ‬notou que não estavam tão presas quanto os pés.‭ ‬Motivado pelo brinde inesperado,‭ ‬continuou a rodar os pulsos e a tentar afastar as mãos para aliviar a tensão do nó que cada vez mais lhe parecia mal dado.‭ ‬Parou por segundos de gesticular e veio-lhe à cabeça,‭ ‬ainda dorida mas cada vez mais determinada,‭ ‬uma noite especial que havia tido com a falecida.‭ ‬A noite em que ele realizou a sua maior fantasia da adolescência.‭ ‬A noite em que Mário convenceu a Adelaide a deixar prender-lhe as mãos atrás das costas para assim se demorar num delicioso festim de prazeres contínuos e inesquecíveis.‭ ‬Depois de a ter levado,‭ ‬com mestria,‭ ‬a seis orgasmos estridentes que se revelaram por ser‭ “‬Dos melhores que já tive na vida‭”‬,‭ ‬tal como ela lhe confidenciou já de cigarro na mão,‭ ‬o que para a rodagem de Adelaide,‭ ‬foi um elogio e peras,‭ ‬como nenhum outro,‭ ‬e que,‭ ‬por isso,‭ ‬lhe elevou a sua prezada auto-estima masculina a um estado de confiança luxuriante,‭ ‬daí para a frente sempre comprovada por todas as outras mulheres com que Mário se deitou.‭ ‬E quando Mário se preparava para lhe introduzir naquela rata escancarada de um desejo em delírio a banana voluptuosamente bem escolhida e guardada para esse momento,‭ ‬uma das mãos de Adelaide sacudiu esse fruto proibido para com a outra apanhar de surpresa o mastro embandeirado de prazer de Mário e metê-lo,‭ ‬ela,‭ ‬bem lá dentro dizendo-lhe:‭ “‬É a ti que eu quero.‭” ‬Ao segundo cigarro,‭ ‬Mário perguntou-lhe como conseguira ela fazer aquilo,‭ ‬ao que Adelaide respondeu,‭ ‬confiante:
-‭ ‬Mesmo que não o diga,‭ ‬uma mulher sabe sempre quando um homem já foi às putas.‭ ‬E esse nó que tu me deste,‭ ‬só uma puta to podia ter ensinado a fazer.‭ ‬São todos iguais e para os desatar,‭ ‬basta puxar ao mesmo tempo pelas duas pontas.
Naturalmente excitado pela descoberta,‭ ‬Mário assim o fez e,‭ ‬em três tempos,‭ ‬estava em pé enquanto seguia,‭ ‬concentrado,‭ ‬a conversa dos outros,‭ ‬do outro lado da porta.‭ ‬Olhou em redor e atrás de si reparou nas pedras da calçada que uma luz ténue e distante de um candeeiro de rua lhe anunciava,‭ ‬à socapa,‭ ‬pela janela.‭ ‬Antes de dar um passo,‭ ‬mediu a distância até à janela e num salto atirou-se através dela,‭ ‬quebrando-a num chinfrim nocturno para acabar no chão da rua,‭ ‬em pleno caminho para a liberdade.‭ ‬Já a desaparecer da esquina,‭ ‬a correr pela vida,‭ ‬ainda ouviu a mesma voz masculina a gritar:‭ “‬Foda-se.‭ ‬O gajo fugiu.‭”

Ainda atordoado com os recentes acontecimentos,‭ ‬Mário acordou no dia seguinte já atrasado para o exame de Anatomia onde chegou mesmo em cima da hora,‭ ‬ainda a tempo de pedir a folha de exame ao Professor Reinaldo.‭ ‬Mário fitou-o enquanto o outro lhe entregava o teste,‭ ‬a sua cara,‭ ‬subitamente,‭ ‬parecia outra.‭ ‬A de um assassino com dupla personalidade.‭ “‬Será ele o nosso Dr.‭ ‬Jeckill e Mr Hyde‭?”‬,‭ ‬questionou-se ao mesmo tempo que lhe agradecia cabisbaixo o formulário.
Duas horas mais tarde,‭ ‬e profundamente esgotado pelo exame que não conseguira fazer,‭ ‬Mário estava já sentado noutra cadeira,‭ ‬fazendo a prova que mais lhe era habitual,‭ ‬a de um fino gelado na cervejaria do costume,‭ ‬a do Libório.‭ ‬À sua volta estava a gente de sempre:‭ ‬o Guima,‭ ‬o pintor envelhecido por uma cegueira galopante,‭ ‬à conversa com um par de estudantes veteranos,‭ ‬outros‭ “‬morcegos‭” ‬sentavam-se mais lá ao fundo e,‭ ‬à sua frente,‭ ‬uma mesa de miúdas castiças.‭ ‬Todos eram atendidos pelo mesmo empregado de há trinta anos,‭ ‬o sôr Freitas,‭ ‬um cinquentenário que preferiu as conversas de café às do entre o deve e o haver que lhe contabilizavam a vida antes do casamento.‭ ‬Bastou ao Mário perguntar-lhe‭ “‬E então‭? ‬Novidades‭?”‬,‭ ‬que o sôr Freitas,‭ ‬o principal ardina da cidade,‭ ‬desbobinou logo:‭
-‭ ‬Olhe amigo,‭ ‬então não é que a casa de putas da Isaura vai reabrir na próxima sexta‭?

-‭ ‬Já nesta sexta‭? ‬-‭ ‬perguntou Mário incrédulo a tentar ganhar tempo para perceber o que se estava a passar.

-‭ ‬É como lhe digo‭! ‬Neste país,‭ ‬quem tem amigos ricos não morre na prisão.‭ ‬-‭ ‬sentenciou o sôr Freitas abandonando revoltado o fino na mesa já com o ouvido experimentado num‭ ‬pssst‭!‬ chegado da mesa em frente.
‭“‬Realmente‭!”‬,‭ ‬pensou Mário dando um gole lento na cerveja cheia à pressão,‭ “‬como a frieza empírica deste homem põe a nu a verdade dos factos.‭ ‬A vida,‭ ‬para muitos,‭ ‬é um professor cruel mas eficaz.‭”

E na sexta-feira seguinte lá estava o Mário com os seus colegas à entrada da‭ “‬Isaurinha‭”‬,‭ ‬como entre eles era conhecida‭ ‬a casa de putas.
O ambiente estava estranho.‭ ‬Tudo se parecia com a reabertura do cabaret da moda.‭ ‬Havia um porteiro,‭ ‬neste caso,‭ ‬uma porteira,‭ ‬a Dona Fátima,‭ ‬que como todos os porteiros tem um nome conhecido por toda a gente,‭ ‬a seleccionar os mais ilustres entre os magotes de pessoas que se juntavam à porta,‭ ‬entre elas alguns improváveis notáveis da cidade que se misturavam num colectivo maioritariamente masculino já que os prazeres reconhecidos à casa piscavam também algum olho à ala feminina da sociedade.‭ ‬Do interior,‭ ‬sentiam-se lentas luzes discretas a condizer com‭ ‬belles chansons francaises que compunham como nenhumas outras a atmosfera.
Mário,‭ ‬um desses ilustres clientes da casa,‭ ‬viu de imediato o seu passaporte reconhecido e entrou,‭ ‬juntamente com os seus amigos para o ex-local do crime.‭ ‬Lá dentro foi de imediato recebido pela anfitriã,‭ ‬a Dona Isaura,‭ ‬que,‭ ‬ainda com um ar,‭ ‬como dizer‭?‬,‭ ‬combalido pelo sucedido,‭ ‬o recebeu com saudades,‭ ‬abraçando-o ao mesmo tempo que pousava o cabeça no seu ombro.
-‭ ‬O espectáculo tem de continuar‭ ‬-‭ ‬segredou-lhe ela tentando justificar-se,‭ ‬convencendo-o com a confortável noção de que o tempo acaba sempre por curar tudo.
-‭ ‬Enfim,‭ ‬o que lá vai,‭ ‬lá vai‭… ‬-‭ ‬continuou,‭ ‬erguendo com pêsames a cabeça para em seguida oferecer ao grupo um copo do champanhe habitual,‭ ‬convidando,‭ ‬sorrindo:
-‭ ‬Hoje,‭ ‬as meninas são por conta da casa‭! ‬Aproveitem.

4 comentários:

Anónimo disse...

A trama continua bem intrincada. Veremos como se unem as pontas soltas

Anónimo disse...

grande volta...grande trama e que grande festa se aproxima...muito bom, adorei este texto..e adoro-te meu amor

1xi, teco

Anónimo disse...

Estou a gostar bastante

Anónimo disse...

Apresenta-se mais um nó no novelo. Quem tiver a ousadia de começar a desbravar esta história vai encontrar uma montanha russa cheia de altos e baixos.Parabéns André.