sexta-feira, outubro 13, 2006

Cap. 9 (Escrito por Sandra Franco)

Duas horas.
Duas horas de terra que cheirava a mofo, de impaciência e de indecisão: se no fundo do buraco estivesse o corpo, era mau, porque tinham de o ver. E um corpo de tantos dias, por mais agradável que tivesse sido em vida, não devia estar grande pitéu; se no fundo do buraco não estivesse o corpo, havia que procurar por ele. E, ora, como um cadáver tem pernas mas já não faz grande uso delas, havia que procurar também pelas pernas que tinham posto o corpo a andar.
Primeiro foi a pá que perdeu a cabeça e foi preciso ir procurar outra. Depois, as meninas da D. Isaura, que tinham sabido da notícia e acorrido em polvorosa, numa união inaudita com as beatas das redondezas, a gritar "Blasfémia!!Hereges!!";por fim o sol, aquele sol doentio típico da altura do ano, baixo e intenso, que fazia os homens pararem de escavar a cada passo para tirar o lenço da algibeira e limpar o suor da testa.
- Caramba, que diabo, homens, a terra foi remexida há dias, duas horas para destapar uma sepultura? - bramava Aníbal, também de lenço na mão.
- Tem de compreender, chefe, a pá perdeu a cabeça, demorou a encontrar outra, só aí perdeu-se um rôr de tempo!
Aníbal atirou a mão que segurava o lenço, num gesto de desprezo, e bateu o pé na terra macia.
- A perder a cabeça estou eu quase! Vamos lá acabar com isto! - resmungou novamente, entre uma fumaça de cigarro e mais um limpar de testa.
Abílio compreendia, assim como compreendia Aníbal, que não era só o calor nem o trabalho que os punha a suar; e compreendiam ainda melhor porque é que o "capitão", há última da hora, tivera um "imprevisto", um "assunto urgente", e ausentara-se...
Todos eram homens. Todos conheciam a Adelaide - senão em primeira "mão", pelo menos de ouvir contar; e todos a conheciam de vista. Ninguem estava com grande vontade de ver o corpo roliço onde tantas vezes tinham entrado - ou sonhado que entravam!-retalhado de há meia dúzia de dias.
E o cheiro - comentava um dos gatos-pingados, entre uma cavadela e outra, o cheiro é do piorio, parece de...
- Parece de coisas mortas, homens, que é do que é! Caramba, terei eu que ir ajudar a cavar? Não há é mais pás, senão onde é que esse buraco já ia! - reclamou Aníbal, o chefe, com ar de chefe e a mão do lenço a abanar.
Abílio olhou para ele pelo rabito do olho. O chefe a cavar. Se não estivesse tão nervoso, ainda lhe dava vontade de rir...assim, só lhe dava mesmo vontade de cavar, mas dali para fora!
Por fim ali estava. O caixão.
Debruçaram-se os quatro, um por cada lado da sepultura.
As rameiras e as velhas beatas tinham dispersado com medo de ter que assistir ao espectáculo. Benziam-se de longe, espreitando por entre as grades do cemitério, num misto de despeito envolto em devoção e curiosidade embrulhada numa morbidez secreta.
- Se o doutorzinho nos mentiu... - ciciou Abílio, de olhos fixos na tampa de madeira do caixão
- Pois olha que não sei o que é pior: que tenha mentido ou que tenha dito a verdade! - respondeu Aníbal,de mãos na anca, com um ar ausente. - Bem, vamos acabar com isto!
Um dos homens desprendeu os ferros que seguravam a tampa ao caixão.
Aníbal hesitou por momentos,de pá na mão; e de repente, num impulso único, lançou a pá para a frente, fincou as mãos com força, e com um rangido lamentoso, a tampa cedeu.
Silêncio.
Dentro e fora, o mesmo cenário: terra, apenas. O caixão estava cheio de terra.
Abílio soltou um assobiozinho involuntário.
- Bonito serviço...
Aníbal atirou fora o que restava da pirisca que ainda tinha entre os lábios.
- O doutorzinho afinal não mentiu. Vamos embora, Abílio.
- Oh chefe...tapamos isto? - perguntou um dos homens, numa voz entaramelada mal recuperada do assombro.
- Tapas o quê? Não vês que está vazio? Oh..! - respondeu, num assomo de impaciência. Era tal e qual o que tinha dito o Abílio: bonito serviço! - Vamos embora, vamos lá falar com o professor...


Abílio olhou em volta e juntou os lábios num assobio silencioso: o professorzinho não vivia mal de todo.
Não lhe invejava completamente a sorte - aturar maganos, desmamar meninos acabados de largar a saia da mãezinha, alguns com mais borbulhas que pelos na barba - não era vida de rei, nao senhor.
"Deixa lá que tu, Abílio, a rapar bêbados das ruas e a correr com pegas das esquinas, leva-la melhor!" - pensou de si para consigo, abanando a cabeça ao de leve.
Professor da faculdade, não devia ganhar mal; e para mais ainda tinha a loja de tecidos, herança de um tio. A clientela não era da alta, mas pagava - toda a gente sabia que ali se vestiam as "meninas" da D. Isaura; e dinheiro...não lhes faltava.
- Não vive mal, o homem... - comentou Aníbal, traduzindo em voz alta o que passava pela cabeça de Abílio.
- Parece que não, chefe! Não percebo para que precisa um homem assim...
O homem que surgiu por trás da porta parecia alarmado pela luz, como se tivesse acabado de descobrir que era dia.
- Bom dia. Queremos falar com o professor Reinaldo. - atirou Aníbal, com um ar autoritário, muito de polícia, muito de chefe.
- O professor está ocupado, não atende ninguém. - respondeu o homem, fazendo menção de fechar a porta.
- Vá dizer ao professor que está aqui a polícia e que quer falar com ele. Pode ser que lhe faça crescer um quarto de hora no relógio...
O homem deu meia volta e desapareceu dentro da casa, deixando Aníbal com um sorrisinho.
- Ora viste? É só dizer as palavrinhas mágicas...- disse o chefe, puxando por uma ponta do bigode com um ar de satisfação. Abílio riu, por simpatia, com as mãos atrás das costas e um saltinho de calcanhares, impaciente pela bazófia.

Mal o chefe Aníbal sabia com quem tinha acabado de falar...