terça-feira, novembro 21, 2006

Cap. 12 (Escrito por Runa Mariano)

"EXTRA, EXTRA!! VEJA NO JORNAL DE COIMBRA! APANHADO O
ASSASSINO DAS MULHERES DE MAU PORTE!!,
bramavam os ardinas da cidade,
vendendo jornais como se fossem pãezinhos quentes.

No posto de polícia, o chefe Aníbal Cavaco lia a notícia de primeira página -“Para grande espanto de toda a academia e da cidade de Coimbra, o conceituado Professor Reinaldo de Menezes y Garcia, um dos mais ilustres mestres da nossa Universidade, foi ontem, tarde da noite, surpreendido em flagrante quanto se prestava a matar, a golpes de navalha, aquela que seria a sua terceira vítima. Na refrega que se seguiu, enquanto tentavam manietá-lo, foi o meliante acometido por uma apoplexia assaz violenta, jazendo agora, entre a vida e a morte, no Hospital Universitário. Este caso macabro teve início…” Aníbal pôs o jornal de lado, endireitando o corpo na cadeira e acendeu pensativamente o quarto cigarro da manhã.
De repente adentrou o acanhado gabinete um excitado Abílio.
- “Maravilha, hein chefe? Um caso complicado resolvido em três tempos. O capitão Casimiro está fusiante de contente.
- Fusiante, Abílio? Não quererás dizer esfusiante?

- Foi o que eu disse, chefe.
- Cala-te um bocado, e senta-te aí, rapaz. Não há então nenhuma dúvida nessa cabecinha?
- Dúvida, chefe? Qual dúvida?
- Dúvida, homem, dúvida de que o culpado seja mesmo o professor!
- Por mor de Deus, chefe, atão o homem não foi apanhado a bem dizer com a mão na massa? Que dúvida pode haver, hein?
- Pronto, acalma essa cabecinha e tenta concentrar-te, fiz aqui um resumo do que sabemos deste caso e quero recapitular isto contigo.
- Desculpe, chefe, quer o quê?
- Rever o caso, Abílio, trocar impressões, ver se nos escapou alguma coisa, percebes?!
- Claro, chefe, reca… coméra a palavra, reca…
- Deixa, Abílio, não é importante, cala-te e ouve! Temos, então, um suspeito principal, o professor Reinaldo, vejamos o que sabemos dele. É idoso e não deve muito à saúde, certo?
- Certo, chefe!
- Foi chamado na noite do primeiro crime, mas nega tal facto.

- Certo, chefe!
- Se me dizes outra vez “certo, chefe” não respondo por mim…
- Certo chefe, quer dizer, desculpe, chefe.
- …
- Pronto, chefe, não fique assim, homem, olhe lá o coração, eu calo-me já.
- … continuando… foi visto pelo Mário Mendonça, à porta da casa da Isaura, preparando-se para levar o corpo da Adelaide, ajudado por dois desconhecidos, tendo-se confirmado que a sepultura da infeliz estava vazia. E foi apanhado pelo mesmo Mário quando, presumivelmente, se preparava para cometer um homicídio na pessoa da D. Isaura.
- Não era na pessoa, era mesmo nela, chefe, não estava lá mais ninguém.
- …
- Pronto, chefe, pronto, mas depois tem que me explicar essa.
- Abílio, é uma maneira de falar, quando se diz na pessoa de alguém, quer-se dizer nessa ou a essa mesma pessoa, entendeste?
- Entendi, chefe, pode continuar.
- Muito bem, agora uma pergunta, quando fomos ao hospital notaste no professor alguma ferida recente, uma ferida que pudesse ter sangrado abundantemente?
- Ah Ah! Então era isso que o chefe procurava quando rondou a cama a levantar as mantas e a espreitar. Ah, magano, comé qu’eu ia adivinhar? Mas uma ferida? Praquê?
- Lembras-te do segundo assassínio, o da Angélica? Lembras-te do rasto de sangue na janela e no telhado? Achas que a morta saiu para apanhar ar e voltou depois ao quarto?
- ahhh… agora é que percebi mesmo, o sangue era do assassino… mas’atão se o professor não tem uma ferida… atão não pode ser…
- Claro que não, Abílio, claro que não. E mesmo que tivesse, acreditas que um homem idoso e fragilizado consegue abrir peitos a golpes de canivete? E depois sair pela janela, saltitando de telhado em telhado? E mesmo que conseguisse, achas lógico que um eminente tanathologista, que tem acesso às ferramentas próprias e adequadas à sua profissão, iria usar uma navalha para o fazer?
- Ora, esta, ora esta… - repetia Abílio, com cara de espanto - o chefe realmente… ora esta… - de repente levantou-se de um salto - temos que ir dizer ao capitão, o homem ia a caminho de falar com o governador, ai Jesus, isto é que vai ser…
- Calma, senta-te, deixa lá o Casimiro agora. Tentei demovê-lo, não me quis ouvir, agora que se desunhe. Vamos mas é olhar agora para o Mário Mendonça.
- Ele está cá?
- ‘Olhar’, ‘debruçar-nos sobre’, ‘falar de’, homem de Deus!
- O chefe hoje parece na pessoa de um doutor a falar.
Aníbal esboçou um sorriso, decidindo nem corrigir o pobre Abílio.
- Mário Mendonça, filho de boas famílias, estudante aplicado, rapaz calmo, sem nada de anormal, até que, repara bem, descobre o cadáver da Adelaide, apanha o mesmo cadáver a ser roubado pelo professor Reinaldo, é agredido e raptado sem causa conhecida, conseguindo fugir pelos seus próprios meios e, para completar, é ele que surpreende e evita a dita tentativa de homicídio da Isaura? O que te diz tudo isto, Abílio?
- Não sei chefe, pode ser “cuncidência”, não acha?
- Pode sim, Abílio, pode ser essa tal de “cuncidência”, é muita mas pode. E, finalmente temos a terceira peça deste enredo, a D. Isaura.
- E que tem ela, chefe?
- Tem que foram cometidos dois crimes na sua casa e ninguém deu por nada. Tem que é cúmplice do professor Reinaldo no desaparecimento do cadáver da Adelaide, mas nega. Tem que, logo antes do Mário ser raptado, passou esbaforida por ele, gritando-lhe que fugisse, mas diz que nada viu. E tem que ia sendo apunhalada pelo professor, mas afirma que desconhece os motivos. É muito ‘tem’, não achas?
- Ó chefe, que embrulhada danada, quer dizer que estamos como no princípio, não é?
- Resumiste perfeitamente, Abílio, e ou muito me engano ou este caso ainda tem pano para mangas…

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Deitado de costas na enxerga, o olhar febril, fixo para além do tecto, o corpo em fogo, a voz ecoando na sua cabeça, premente, imperativa, exigindo sangue…

sábado, novembro 11, 2006

Capítulo 11 (Escrito por Gonçalo Santos)

Caiu a noite e Mário Mendonça dirigiu-se à famosa “Isaurinha”. À falta de ideia melhor, decidiu confrontar directamente Isaura com o facto de a ter visto, juntamente com o Prof. Reinaldo, a transportar o corpo de Adelaide numa carreta. Ocorrera-lhe por diversas vezes confrontar directamente o Prof. Reinaldo, mas isso sempre lhe pareceu arriscado. Porém, quando lhe ocorreu a ideia de confrontar Isaura, ficou tão agradado que lhe deu vontade de gritar “Eureka!” a plenos pulmões.
Através da forte chuva que caía, Mário vislumbrou finalmente a entrada do mais famoso bordel de Coimbra. Não havia ninguém na entrada mas a porta estava apenas encostada, provavelmente por descuido de quem entrava ou, talvez, pela falta de hábito de fechá-la. Fosse como fosse, Mário resolveu empurrá-la, já que não sentia necessidade de bater para entrar naquele lugar e também se limitou a deixá-la encostada. Lá dentro surpreendeu-se por ver tudo às escuras, mas ficou ainda mais surpreendido quando ouviu uma voz familiar que provinha do andar de cima: era o Prof. Reinaldo. Apurou o ouvido e distinguiu também uma outra voz que dialogava com ele. Era Isaura, a proprietária daquele bordel. Mário optou por subir as escadas, silenciosamente, para poder escutar convenientemente a conversa. Era a sua grande oportunidade de saber o que escondiam aqueles dois! As vozes desciam do quarto de Isaura, uma divisão à qual a maior parte dos frequentadores do local nunca tinha acesso. Mário aproximou-se da porta e pôs-se à escuta.
“Isaura, não sabes como fiquei por me teres tratado tão mal! Ainda bem que fizemos as pazes, agora. Sem ti já não vivo mais! Sinto o cheiro do teu corpo no meio de todos os tecidos da minha loja e imagino-me a despir-te magníficos vestidos de todos eles.”
“Podes parar.” - disse Isaura.
“Achas que estou a brincar? Achas que são doideiras de um homem que já devia ter aprendido a ser mais maduro? Pois bem, eu devia ser mais maduro mesmo, mas contigo não consigo. Consegues fazer de mim o melhor e o pior dos homens. Fico louco quando me tratas mal.” “Mas hoje não te tratei mal, pois não?”
“Não, realmente não. Sinto-me um homem novo. Tu fazes coisas que mais nenhuma mulher sabe fazer.”
“Então pára de lamechisses. Eu preciso de um homem, não de um desses rapazolas inseguros que frequentam o meu estabelecimento. Repito aquilo que te disse antes: desiludiste-me, Reinaldo! E não faças essa cara! Vais voltar ao rapazola inseguro? Se vais, podes sair já deste quarto!”
“Porque me tratas assim, Isaura?”
“Sabes muito bem. Devíamos ter deixado tudo seguir o seu rumo normal. Para que quiseste esconder o corpo da Adelaide? Porque não contaste à polícia tudo o que viste? Porque tiveste medo, foi o que foi. Por fora pareces forte e impiedoso, mas por dentro és cobarde e medroso, como só eu sei, e a tua cobardia está a fartar-me. Repito, estás a a fartar-me! Pões-nos em perigo aos dois!”
O Prof. Reinaldo sentiu a raiva e o ódio a querer apoderar-se dele. A sua cara começou a ficar lívida e o perigo para Isaura ficou iminente. Ela, experiente, sentiu a mudança e procurou deitar água na fervura.
“A verdade é que me irritas, mas, no fundo, não há mais nenhum homem para mim além de ti. Essa é a verdade! Mas porque me irritas dessa maneira? Porque nos colocas em perigo? Parece que tens alguma cumplicidade com esse teu misterioso assistente que desencantaste sabe-se lá onde...”
Mas o Prof. Reinaldo já não ouvia mais nada. A sua alma estava tolhida por uma raiva infinita que o impelia a matar.
“Mas que olhar é esse, Reinaldo? Se queres convencer-me que podes meter medo a alguém estás a conseguir convencer-me. Podes parar. Que navalha é essa? Meu Deus, enlouqueceu de vez! Pára com isso! Agora, estás realmente a meter-me medo!
Mário não aguentou mais e irrompeu no quarto de Isaura.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Cap. 10 (Escrito por Daniela Cerqueira)

O cheiro mentolado, ardente e adocicado, que de repente lhes invadiu as narinas, fê-los recuar. Não foi o porte, nem a presença daquela silhueta vincada, cujo recorte desenhava a quadratura do caixilho da entrada… Foi o cheiro que dela imanava… Um cheiro a unguento, a ambulatório, a maleita dissecada, a morte…
- Eehr...Muito boa noite, Sr. Professor – balbuciou Aníbal ainda atordoado pelo embate balsâmico daquela figura, para quem se forçou a avançar, oferecendo desajeitadamente a mão a um cumprimento não consumado. - Peço desculpa de o vir incomodar a esta hora… temo que estivesse ocupado, mas… mas gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas sobre… decerto já ouviu falar…sobre o sucedido... Podemos entrar para….?... – arriscou inseguro, perante a expressão inexpugnável do professor, imóvel no patamar alteado da frontaria.
- Com certeza que sim, mas não hoje nem agora, se não se importam. Neste momento, estou a concluir uma pesquisa da faculdade que não posso interromper; de seguida, esperam-me na Universidade, mas…certamente que depois… Contudo, não vejo em que vos possa servir… – respondeu, imperturbável.
- Bem…o que aqui nos traz é também uma pesquisa, ou melhor uma investigação. Estamos a investigar os crimes das raparigas da D. Isaura e gostaríamos que nos desse alg....
- Ora, por favor ? interrompeu agastado... Em que vos poderei eu ajudar ? Não faço autópsias para a Polícia, já me chegam as dissecações da faculdade; Efectivamente, nessa noite fui chamado ao local, mas, quando vi do que se tratava incumbi um colega do hospital de tratar dos trâmites técnicos. Estou certo que vos poderá elucidar sobre o que viu…Procurem-no no necrotério da faculdade. E agora se me dão licença…já é tarde. Tenham um bom dia, meus senhores - impacientou-se o Professor, demonstrando intenção de encerrar a porta à sua frente.
- O corpo, Professor! Gostaríamos de saber se viu o corpo da…da vítima - Cortou Aníbal, travando a porta com o antebraço .
Um olhar empedernido de gelo penetrou a íris de Aníbal, tardando aqueles subtis instantes que fazem de alguns olhares uma viagem de longo curso pelos interstícios da alma que trespassam…
- Qual corpo, homem de Deus? Perguntou pausadamente, forçando-se a uma serenidade expirada. - Como quer Vocemêce que eu saiba de algum corpo relacionado com esses crimes, se acabei de lhe dizer que deleguei num colega? Isso não será trabalho vosso ? … e aproveitando a pausa aspergida de sarcasmo, endureceu a expressão e retomou um tom cerimonioso, concluindo: - E a propósito de trabalho, se não se importam, tenho de ir terminar o meu! - E sem mais, encerrou a porta, com a firmeza que pretendia fosse dada à sua indiferença.
A passada larga e apressada, com olhar fixo no chão, Aníbal rumou recto à esquadra, indolente ao frio que mais do que as mãos, lhe tolhia a cara, indiferente ao Abílio que descompassado o tentava acompanhar. Ressabiado, não tanto pela atitude sobranceira do Professor, mas com a sua própria incapacidade de se afirmar como autoridade em exercício, sentia o fervilhar das palavras soltas e frases desconexas que lera no auto de notícia lavrado pelo Moreira, nas notas por ele compiladas dos vários depoimentos e das declarações do Mendonça… Por mais que tentasse não conseguia unir as pontas soltas… “Como é que raio me vai desaparecer o corpo depois de tanta gente o ter visto morto ? E que esconde este Professor ? Irra, que nem depois de morta consegue dar sossego...”, remoía.
Fincando ainda mais os tacões na calçada, circundou os destroços da recém demolida Capela do Carmo, subiu a nova Martins de Carvalho, atravessou a antiga Horta de Santa Cruz e algumas cortadas depois, deixava bater atrás de si e quase nas ventas no Abílio, a porta da nova esquadra.
Como um animal obstinado no rasto a seguir, adentrou-se no gabinete, pegou na pasta que trazia filada e abrindo-a, espalhou os papéis sobre a secretária, dispondo-as como peças de um puzzle impossível.
Com o crânio em centrifugação, deixou-se cair na cadeira e apoiando nas mãos a testa ardente, fixou todos aqueles documentos dispersos aventando encontrar-lhes algum sentido. Deteve-se num à sorte:

“Auto de delligência”

Aos onze dias do mez de Fevereiro do Real Anno da Graça de Sua Majestade El-Rey D. Carlos, eu, subcomissário Moreira, fui, pelas 4 horas e meia da madrugada, interpelado por uns poppulares em grande afliçam, para autuar a ocorrência que vinha de suceder na Rua de Satão, desta cidade. Dadas as circumstâncias indiciarem um crimen violento, com desfecho de morte, fiz-me acompanhar do cabo Matias, de serviço à portaria. Uma vez lá chegados, vimos ror de gente alvoroçada, ajuntada à porta da mansão da D. Isaura, casa reputada pela frequência de muita burguezia desta cidade. Num dos quartos do 2º andar, jazia o cadáver de uma mulher, totalmente despojado de vestes, estendido sobre a cama. O cadáver apresentava indícios de ter sido espostejado com arma branca, presumivelmente faca, navalha ou punhal. No soalho do quarto havia inúmeras manchas de sangue já muito pisoteadas e nas paredes ao redor da cama, muitas outras de diverso tamanho e forma causadas por espichamento dos golpes consecutivos infligidos na vítima. Procedemos à inmediata evacuaçam do local, tendo eu, subcomissário, providenciado pela sellagem da porta do ediffício e ordenado ao cabo Matias que fosse chamar o médico do necrotério universitário. Inquiridos alguns dos presentes que intimei a comparecer na esquadra para prestar declarações, apurei tratar-se dos restos mortais de Adelaide da Conceição, cuja identificaçam, idade, naturallidade e filliaçam não pude registar com certidam face à inexistência de documentos. De acordo com os testemunhos dos poppulares ali presentes, presume tratar-se de uma mulher vinda de fora, que se hospedava há cerca de 5 annos na residência da D. Isaura, mui affamada nos ofícios relacionados com o comércio da carne, offensivos da Moral e dos Bons Costumes. Já soara a alvorada quando o ilustre fisicista Professor Reynaldo de Menezes y Garcia assomou ao prostíbulo para examinar o sobredito cadáver .”…

“Professor Reinaldo…professor Reinaldo…afinal não me enganei…Estiveste lá, magano… Onde raio estará agora o relatório? Eu ia jurar que vi um relatório…” Ruminou Aníbal enquanto vasculhava furiosamente aquela chusma de papelada espalhada sobre a mesa já de si confusa…”auto de inquirição…não… auto de declarações Isaura…Mário Mendon..não, não, não!!! raios! Tem de estar por aqui… Ó Abílio procura-me aqui o….ah! cá está!”

“RELATTORIUM D’EXAMEN POST-MORTEM

de ADELAIDE DA CONCEIÇÃO”

Individuo de sexo feminino, raça branca, com 1,65 m de altura e cerca de 55 kg de peso, idade compreendida entre os 20-25 anos, íris esverdeada, cabelos longos castanho-escuro e lisos, dentição completa e bem tratada, sem sinais exteriores de anomalias físicas.
Fillius nullus.
Apresentava-se totalmente nua, em cúbito dorsal; membros infferiores affastados e superiores cruzados ao nível dos pulsos, collocados acima da cabeça, indiciando tal posição e os hematomas que rodeiam os pulsos, ter sido coagida à imobilização, por blocqueio forçado de ambos os braços.

EXAMEN DO HÁBITO INTERNO

O cadáver apresenta o cinco feridas corto-perffurantes, com direcções e dimensões diversas e que atingem os planos profundos com destruiçam dos vasos carotídeos da traqueya e esóffago, duas delas, com extensão de 7 e 10 cms, uma na zona malar direita e as demais extensíveis à face lateral do pesccoço; 2 feridas corto-perffurantes na região da fossa illíaca sinistra, de direcção oblícqua de cima para baixo e da esquerda para a direita com consequente evisceração local e ruptura intestinal com abundante hemoperitoneu; Apresenta ainda ferida incisiva na região mamillar esquerda, de sentido vertical descendente, com delapidação integral do seio esquerdo e atingimento das estruturas pulmonares laterais; o toráx e toda a zona abdominal encontram-se abertos, com total exposição visceral e aniquilamento traumático dos órgãos nobres (coração, pulmões, rins, fígado, intestinos e baço), havendo uma longa incisão, com rombos incertos de tecido epidérmico rasgado ao longo dos 23 cms de comprimento, desde o diaffragma aos órgãos genitais, quod demonstrat ter sido effectuada em movimentos descontínuos e esfforçados em movimentos de serra, de sentido descendente, conforme se pode ver pelas várias incisuras lapidares, nas extremidades ósseas do diaffragma esventrado. Arrancamento e quebra das vértebras torácicas – 4 do lado direito e 5 do lado esquerdo – e esgaçamento dos tecidos muscullares e vascullares pelo affastamento forçoso – supostamente manual – da caixa torácica aberta em par, para extracção do coração e parte dos pulmões; Foram ainda extraídos, mas por mutilaçam, o úttero, as tromppas e todo o aparelho genital, com espostejamento vaginal e cesura cerce dos lábios e vulva.
Não há indícios de copula carnalis consumat.

Dos órgãos extraídos apenas se encontrava in crimen loccu, parte restante do coração, que à hora deste examen já se encontrava parcialmente comido, alegadamente por animais roedores. Desconhece-se o fim dado ao útero, pulmões, lábios vaginais e vulva.
Atendendo ao estado de coagulaçam do sangue supurado e retido na zona da bacia, aos livores cadavéricos, frigidez dos tecidos orgânicos e rigidez do globo ocular, é de presumir que a morte possa ter ocorrido entre as 02h e as 4h da manhã de hoje.
Pelo corpus delicti, é também de concluir que a mortis causa de Adelaide da Conceição resultou como efeito necessário e directo da agressão, sendo que face ao número e natureza dos ferimentos, ao meio utilizado e ao estado do cadáver, houve maniffesta intençam de matar.

Coimbra, aos onze de Fevereiro de 1905

O Tanathologista responsável :

Dr. Luiz Paes Affonso


Suspenso, como se de repente o pensamento se tivesse libertado do corpo e pairasse em câmara lenta, num vazio orbital, Aníbal vagueava… olhar parado, papel perdido na mão, entregue a uma qualquer espécie de transe.
À medida que lera a descrição detalhada e fria das múltiplas agressões, apercebera-se não estar perante um simples crime violento, um assassínio vulgar. Não. Não tinha sido a vontade de matar, que movera o agente; Tampouco era Adelaide o sujeito visado. Quando muito a ocasião, móbil… Com um décimo daquilo, morre quem quer que seja. Havia um ódio mais profundo, um asco provindo das entranhas, uma aversão que só os acossados sentem, contra algo que a vitima representa, algo que é imperioso banir, extirpar, aniquilar dê por onde der.
As agressões sôfrega e continuadamente desferidas naquele corpo feito cadáver... o coração arrancado e atirado aos ratos, o aparelho reprodutor obliterado... Ninguém faz tudo isto sem um motivo muito forte; nem um animal selvagem seria tão escrupuloso na perfídia... Como se aquele corpo fora a oportunidade encontrada para vingar todo um acumular de despeitos, temores e agonias somadas ao longo de uma Cruzada por um Bem maior… Vida por Vida. Ou matas ou morres!
Mas contra a Adelaide ?…não.
Estava a vê-la, ali mesmo... recostada naquele colchão rombo de tão batido, na alcova lúgubre de odores errantes, luz duvidosa, higiene improvável, onde - para além das coxas roliças que teimavam em escapar-lhe do negligé, apenas um sorriso ladino e uns seios hospitaleiros compunham o ambiente, convidando a sentar, quem lhe encomendava os serviços, 2 andares abaixo.
Um tamborilar, ao de leve na porta, bastava para um prolongado e ronronante “han-haann” que antecipava tudo quanto podia desejar quem se lhe dirigia. Adelaide não era uma rameira como as demais. O nome precedia-a. Aliás, poucos a tratavam como “a puta” e ainda assim, quando acontecia, era para dissimular a familiaridade com que o nome lhes saía, boca fora... No seu caso, o ofício, era um mero adjectivo. Superlativo sintético de bom.
A forma como esbanjava prazer e sensualidade no que fazia, levava os seus homens - mesmo os que lhe chegavam desanimados e caídos - a encherem-se de si, auto-reintegrando-se com que inflados pela capacidade de desempenho e sedução que através do seu gozo, recebiam.
O calor que das suas entranhas imanava, fazia por si só efervescer um homem em segundos, facto que sabia evitar com mestria e competência, torturando-o com sevícias, carícias e todas as demais perícias tão inconfessáveis quão inesquecíveis.
...Lembrava-se bem daquele fim de tarde, em que lá tinha ido desaguar a tensão de uma semana de turno consumida a sovar as vendedeiras e peixeiras revolucionárias “do Grelo”, fazia já quase 2 anos... ela pedira-lhe que simulasse com ela uma detenção… “daquelas de encostar à parede, mãos atrás das costas, pernas abertas…” explicava, entusiasmada. “Quero que me mostres como fazes com os larápios e bêbados das arruaças. Ou com os chulos das vielas! Vá! Imagina-me no gamanço! É fácil”. Insistia, cada vez mais excitada, plantando-se em pontas de pés à sua frente, como que à espera de instruções. Pouco convencido, Aníbal lá anuiu e começou a exemplificar, sem levar a sério o papel, para não a magoar. Logo ripostou que “não! tem de ser a valer, tens de me ver como uma peixeira de mãos à cinta e navalha nos dentes pronta a sacar-ta ”!
Aníbal lá tentou simular, com gestos lentos e estudados : “bem...agarrava-te assim; segurava-te com esta mão e … “
E, num disparate súbito, ela esbofeteia-o, pontapeia-o e de cabelos desgrenhados, expressão assanhada e dentes cerrados começa a socá-lo, desvairada, soltando impropérios, aos gritos, num verdadeiro ataque de fúria. Aturdido, tentou agarrá-la enquanto ela esperneava e rabujava como um animal bravo, despenhando-se no soalho, onde rebolava e entrelaçava-se-lhe nas pernas, completamente fora de si.
Aníbal sorri agora do medo que sentiu, do embaraço que seria se lhe rompessem pelo quarto, tais eram os gritos descontrolados e o barulho dos tralhos a cair e escaqueirarem-se no chão.
Acabou mesmo por ter de a imobilizar, à bruta, torcendo-lhe um braço por trás das costas e erguendo o outro, de forma a acometê-la contra a parede onde só parou com cara colada, no estuque já esfarripado…
Ofegante da luta e aproveitando tê-lo em pressão, estreitando-a contra a parede, Adelaide, mordeu-lhe a mão que lhe ganchava o braço e antes que ele pudesse reagir, agarrou-lhe o membro adormecido sobressaltando-o de susto, logo amansado não só pelas carícias compassadas com que o esfregava nas suas próprias nádegas, como pela voz dengosa e sorriso malicioso com que miava… “então é assim, meu tirano opressor…? é assim que domas as feras que ameaçam atacar-te, éhh…? …isso… … assim…ui que meeedo… o teu mosquetão está quasi, quasi pronto a fulminar-me… “
- Chefe ?! Vocemêce está bem? Eia, c’ um Camano ? Está branco o homem! Parece que viu alma do outro mundo, benza Deus ?