quinta-feira, agosto 31, 2006

Cap. 7 (Escrito por Carla Afonso)

Ele não sabe explicar a si próprio, porque é consigo mesmo que ele apenas e desde há muito já só fala, desde começou a ter a sensação de que a vida se lhe ia escapando como areia seca por entre dedos abertos.
Sabe, isso sim e bem demais, quando começou a sentir-se desintegrar, como que apodrecendo, a partir de dentro.
Lembra-se bem desse momento; recorda-se dele como de uma revelação.
Uma noite de insónia. Uma agitação febril. Uma inquietude que se foi instalando como um visitante indesejado que vem para ficar. A falta de posição na cama, o frio enregelante de um quarto mal aquecido nas húmidas águas furtadas do edifício antigo mais barato que encontrou em Coimbra.
Levanta-se então da cama para passar o rosto quente e transpirado pela água fria que tem na jarra do lavatório de ferro que constitui um dos seus poucos haveres.
Bebe um pouco, apesar do sabor já ferroso, olha-se ao espelho e mal se reconhece nas olheiras fundas que lhe sulcam a face de má cor.
É então que repara no sabão meio desfeito pela água depositada no fundo da improvisada taça que lhe serve de suporte. Também não sabe explicar porque viu nesse pedaço de sabão semi - liquefeito mais um sinal da desintegração eminente do seu próprio corpo. Sabe apenas que foi nesse momento, nesse milésimo de segundo que lhe viria a transformar os dias, que percebeu que tinha que fazer alguma coisa para estancar a sangria de vitalidade de que acredita estar a ser vítima. Nunca lhe passou sequer pela cabeça que a queda acentuada de cabelo, o eczema que lhe alastra na pele e a tosse persistente sejam devidos à má alimentação e à insalubridade do local que habita.
Nunca. Na sua visão simplista, lê isto como meros sinais de uma auto-derrocada eminente que ele tem que aprender a escorar.
Há muito que se sente confuso, dividido, à deriva. Pior que isso, desamparado num mundo estranho e hostil. A verdade é que a vida não lhe tem corrido de feição.
O patrão, um comerciante bruto e prepotente, já o repreendeu várias vezes pela demora e pela troca nas entregas dos tecidos às suas clientes. Quase todas de classe média; algumas delas, as rameiras de maior sucesso da casa da célebre D. Isaura.
Da sua terra natal foram chegando, através de cartas mal garatujadas que se afadigou a tentar ler com os poucos conhecimentos que lhe foram veiculados na sua infância de muito trabalho e pouco investimento no saber, ecos de que a saúde da mãe piorava todos os dias. A tuberculose não perdoa os pobres.
A noiva que deixou em terras serranas do interior já lá vão três longos invernos, cansou-se de acreditar no sonho alimentado por promessas regulares; o tempo não espera disse-lhe ela, e ela não lhe reservaria a mão e o resto do seu corpo pelo resto dos seus dias.
Com o António da Égua, viúvo abastado a precisar de criada para todo o serviço, a rondar-lhe a casa e o leito, o ultimato caiu nas mãos do homem e queimou-lhe o entendimento como ferro em brasa.
Ele ainda lhe pediu algum tempo, mas também este se esgotou sem que o pé-de-meia prometido se tivesse concretizado. A Amália dos seus amores casaria semanas depois com alguém capaz de lhe satisfazer, de uma só vez, as suas necessidades: casa, mesa e a possibilidade de ter os seus próprios filhos, preocupação constante das mulheres que sentem a fúria uterina da procriação. Pouco importou a Amália que o seu novo lar estivesse pejado com os retratos da defunta antecessora; que os pesados reposteiros tivessem sido escolhidos por ela e para ela e que os móveis da agora “sua” Quinta da Boavista lá tivessem chegado pela mão da outra, a mais temível das rivais por já ter desencarnado deixando atrás de si um exagerado rio de qualidades mitificadas, como acontece muitas vezes nestas coisas da viuvez.
O homem chorou até lhe não ser possível verter mais lágrimas; durante esse tempo transformou a sua dor em desamor, em raiva. Em ódio cego pelo sexo oposto. Até a sua virgindade, preservada religiosamente para a ofertar a Amália, na noite de núpcias, lhe doía agora como se da maior inutilidade se tratasse.
Há muito que ouvia falar, em surdina claro, nos dotes sensuais da puta Adelaide. Como se isso, por si só, não bastasse para lhe tentar as carnes, das últimas vezes que lá foi levar-lhe os cortes de tecidos vistosos com que encadeava depois uma horda de homens babosos e babados, ela sorriu-lhe despudoradamente. Como que a convidá-lo para as lides da cama.
E se a curiosidade de experimentar os prazeres ilícitos não se tinha tornado mais forte que a sua vontade férrea de a eles resistir, isso devia-se apenas ao respeito, sim porque era de respeito que se tratava, que tinha pela noiva e pela necessidade de poupar o máximo de dinheiro que fosse capaz.
Agora já nada disso fazia sentido e estava ansioso por se iniciar nos braços da rameira mais requisitada de uma certa Coimbra decadente.
Depressa viria a descobrir que a Adelaide seria impotente para o livrar da sua inexplicável impotência, mas o alvo perfeito para aplacar a sua fúria contra as mulheres.
Não sabe explicar porque a abriu de alto a baixo, a golpes de canivete, objecto que traz no fundo dos bolsos desde criança. Ou como foi capaz de o fazer, logo ele, que nunca foi capaz sequer de esventrar um porco.
Lembra-se vagamente de que ela, a tal Adelaide de sangue quente e pernas grossas, se riu do seu sexo ridículo, de tão murcho e envergonhado. Ria-se descontroladamente; como se, de repente, ela própria se tivesse dado conta de que os seus apregoados dotes não mereciam ter tal fama. Pois se nem o desejo de um virgem ela acendia!
O homem ainda tapou os ouvidos tentando não ouvir o que lhe pareceu ser uma suprema humilhação, mas não foi capaz. Tudo o que ele queria era que ela parasse de se rir dele. O homem vislumbrava nesse riso estridente as gargalhadas que imaginava que alguns dos seus conterrâneos tivessem dado no casório da sua amada. Odiosas gargalhadas dos invejosos que se sentem ressarcidos das suas pobres vidas, quando assistem de camarote à desgraça alheia.
Golpeou-a repetidamente e, passado o horror dos primeiros salpicos de sangue, foi descobrindo que a sua humilhação se desvanecia como nevoeiro numa manhã que teima em tornar-se ensolarada.
Mais do que isso; à medida que a via ir-se embora, apagar-se de vez, sentia-se gradualmente mais enérgico, mais palpitante, mais vivo; até a erecção que o tinha traído minutos antes, estava agora no seu pleno. Foi revigorado e sobretudo vingado que abandonou o local do crime. Por pouco não foi surpreendido por um outro cliente, ávido dos prazeres escondidos que por lá se compravam.
Nessa noite dormiu o sono dos justos, confortado pela sensação de que algo de profundamente visceral tinha sido curado dentro do seu próprio corpo.
Tinha que repetir a sensação de embriaguez que aquele inesperado episódio lhe tinha provocado.
Dias depois, voltaria à casa da D. Isaura disposto a tudo. A tudo, tudo, já não. Se a rameira que contratasse desta vez o não servisse como ele desejava e não lhe acordasse a virilidade em três tempos, não lhe daria qualquer oportunidade para eventuais gozos; pelo menos serviria para lhe curar a saúde.
Quando a Angélica, a mais digna sucessora da infeliz Adelaide, cruzou a porta do quarto onde tantas vezes se abriu para atender os clientes que a escolheram como se de um traço de carne se tratasse, estava longe de imaginar que tinha o seu destino marcado.
Confessou a uma colega de lides na casa mais frequentada da cidade que agora se sentia insegura e hesitante, mas a vida continuava e a ama dos dois filhos que mantinha afastados do seu vergonhoso dia a dia não se deixaria amolecer se a renda não lhe fosse entregue na data certa.
Para o homem, pouco lhe importou que ela fosse menos ardente, sim, mas mais paciente e doce que a sua defunta colega. Olhou-a, já nua, indiferente aos seios fartos e às ancas roliças que tantos outros homens gostaram de tocar sem cerimónias. Observou-a tentando contabilizar mentalmente a força vital que o sangue derramado dela lhe poderia oferecer.
A lâmina recém afiada do canivete de bolso atingiu-a primeiro no peito; entrou nele uma e outra vez, rasgando-lhe traiçoeiramente as entranhas. Ela ainda tentou gritar, mas ele era mais forte e tapou-lhe a boca, imobilizando-a com esse mesmo braço. Os gritos dela, se houve quem os tivesse ouvido, foram confundidos com os muitos que por lá se produziam, por razões bem diferentes da dor.
A Angélica, bem constituída e bem alimentada pelas iguarias trazidas pelos seus amantes mais generosos, tentou defender-se do selvático ataque empurrando o agressor contra os móveis. O homem não estava à espera de reacção, desequilibra-se e cai, trespassando a sua própria mão. O corte, fundo e feio, sangrou abundantemente. A visão do seu ferimento, enlouqueceu-o de raiva.
A estocada final teve como destino o coração, que ele depois faria questão de extirpar e lançar, como banquete, aos ratos. Angélica foi enfraquecendo e não teve tempo de ver que o brilho dos olhos do seu carrasco se foi tornando mais forte à medida que a sua erecção crescia.
Antes de abandonar o local, saltando, mais uma vez, para os telhados vizinhos através da janela do primeiro andar, o homem pendurou cuidadosamente as roupas da sua vítima numa cadeira. Por ordem. Primeiro a saia, grossa de folhos; depois a blusa rendada e casaquinho de lã; só depois o saiote, a combinação, as cuecas de pano e as meias de elástico.
No parapeito da janela de guilhotina com pequenos vidros, brilha um arrepiante rasto de sangue que se prolonga pelas telhas mais próximas.
O homem está eufórico; amanhã pensará na desculpa que vai ter que apresentar ao seu patrão, quando este o vir chegar com uma mão entrapada.
No chão do quarto, o mar de sangue mostrará, a quem lá chegar primeiro, a ferocidade do assassínio.

domingo, agosto 27, 2006

Cap. 6 (Escrito por Jorge Roque)

- Isto está cheio de pontas soltas, chefe. - resmuneou Abílio encostado à secretária do chefe.
- Então temos de começar a uni-las, rapaz. Não achas? - rematou o chefe, Aníbal Cavaco, inalando o tabaco barato para que tinha posses, refastelado na cadeira com os pés em cima da secretária. - O que é que sabemos?
- Muito pouco, chefe, muito pouco. - lamentou-se enquanto sorvia o fumo do tabaco expelido por Aníbal, à falta de verba para fumo seu.
- Recapitula, Abílio, recapitula - insistiu o chefe - que caso este.
- Se o chefe insiste... Ora bem, - desencostou-se da secretária e começou a andar de um lado para o outro, enumerando com os dedos - uma prostituta de nome Adelaide foi brutalmente assassinada na madrugada do passado Sábado para Domingo. Ninguém testemunhou o crime. As duas pessoas que descobriram a vítima já foram interrogadas. Uma prostituta do estabelecimento que acompanhava um estudante de medicina ao quarto da Adelaide. Parece que era famosa essa Adelaide.
- Bem sei - deixou escapar o chefe, para logo corrigir atabalhoadamente, - quer dizer...já ouvi falar... Alguns rapazes aqui do posto vão lá.
Abílio ignora a atrapaçhação do chefe e prossegue. - Esses dois eram uns tais de Angélica e Mário Mendonça.
- Respectivamente. - Completou o chefe dando mais uma passa sôfrega no cigarro que mantinha um enorme fio de cinza precariamente equilibrado nas mãos dele.
- Exactamente. A puta...
- A dona Angélica - interrompeu o chefe.
- A dona Angélica estava em estado de choque, completamente catatónica...
- O que quer dizer isso?
- Não sei. Foi o que disse o médico.
- Claro, claro. Catatónico. Já sei que estado é. A minha sogra costuma ter desses achaques. Fica meses sem falar, graças a Deus.
- Sorte a sua, chefe. Bem precisava de uma sogra assim. Continuando, a dona Angélica nada disse, devido a esse facto. O estudante, o tal Mário Mendonça foi de grande ajuda. O corpo tinha o ventre completamente esventrado e o coração foi retirado e colocado numa bandeja na mesinha de cabeceira. Também o útero foi removido, mas não se encontrou. Apesar de tudo isso há um factor curioso.
- E qual é? - O chefe mirava o enorme fio de cinza que pendia do cigarro.
- A roupa dela não tinha uma pinga de sangue e estava imaculadamente dobrada numa cadeira.
- Interessante. Nem uma pinga de sangue?
- Nem uma.
- Estamos aqui perante um assassino que por um lado abre o corpo todo e por outro gosta de organização.
Abílio ouvia atentamente o raciocínio do chefe na esperança que aquilo levasse a algum lado, mas Aníbal não disse mais nada.
- Entretanto, parece que não se encontrou mais nada de relevante na mansão da Dona Isaura que reabriu ontem.
- Mansão? - inquire o chefe admirado.
- Sim. Este caso era do Moreira, que entretanto foi transferido para outra comarca, eu nunca lá fui. Disse-me que era uma mansão. Aqui está na compilação do caso, pode ver, - Abílio mostra um molho de papéis ao chefe e aponta. - Está a ver? Esta adenda, pagina 13 do capítulo 5. Ontem até serviram champanhe de borla e as mulheres foram de graça.
O chefe levantou-se com os papéis na mão. - O Moreira é um cabrão.
- Então porquê, chefe?
- Sempre me quis lixar. Temos de conferir todos estes factos novamente. Vamos fazê-lo nós os dois, sem interferências exteriores.
- Não estou a perceber, chefe.
- Ó rapaz, o bordel da dona Isaura é um barraco e não uma mansão. Aquilo tem três andares a cairem de podres. E o champanhe era zurrapa. Do pior que já bebi.
Um silêncio constrangedor baixa sobre a sala do posto de polícia durante alguns momentos.
- Ora bolas, chefe. Então temos de nos pôr a andar. Daqui a nada o Casimiro chateia-nos a pinha. Quer resultados.
É nesse momento que entre Casimiro, o mais graduado da cidade de Coimbra, resposável pela baixa taxa de criminalidade. Pelo menos enquanto não a contabilizarem pode sempre gabar-se disso. Gosta de que lhe chamem capitão.
- Então Aníbal. - cumprimenta com um vozeirão. - Há novidades?
- Ainda não, capitão. Recebi o caso ainda há bocado.
- Preciso de resultados rapidamente. Tenho o governador em cima de mim. Mas isto está a complicar-se.
Aníbal e Abílio entreolharam-se.
- Como assim, capitão? Há algum problema?
- Está lá fora o estudante, o Mendonça.
- O que a encontrou?
- Esse mesmo. Diz que o prenderam há quatro dias numa barraca depois de o terem agredido, mas conseguiu escapar-se. E na terça-feira viu um professor lá da faculdade levar o corpo da defunta numa carreta, mas não sabe para onde.
- Mas ela não foi enterrada na segunda? Veio no jornal.
- Foi. Eu estive lá. - assumiu sem rodeios. - Vamos ter de exumar o corpo. Ver se está lá ou é delírio.
- Isto está mesmo complicado. - desabafou Abílio.
- Vamos recolher já o depoimento dele. Temos de ver que professor é esse e quem o prendeu. - afirmou Aníbal. Depois inquire pensativo - Ouça lá, porquê que ele levou tanto tempo a vir cá?
- Parece que esteve a fazer investigação por conta própria. - Informou o capitão. - Saquem-lhe a informação toda.
Nesse instante um homem entra a correr no gabinete.
- Capitão! Capitão! - grita esbaforido.
- Que foi homem? - perguntou no mesmo tom. - Acalme-se que lhe saem os bofes pela cara.
- Mataram outra.
- Mataram outra quê?
Os três homens alarmaram-se.
- Outra meretriz, capitão.
- Ora bolas - deixou escapar Abílio.
Os três homens olharam-se e depois o capitão Casimiro olhou para o portador da notícia.
- Sabe quem era?
- Dizem que se chamava Angélica.

sábado, agosto 26, 2006

Cap. 5 (Escrito por André Coelho)

“‬Eu conheço essa voz‭” – ‬pensou Mário ainda antes de abrir os olhos.‭ “‬Onde estou‭? ‬Que sítio é este‭? ‬Está tudo escuro‭… ‬não vejo nada.‭” – ‬continuou ele num raciocínio lento e intermitente.‭ ‬Estava no máximo das suas capacidades.‭ ‬Tentou mexer-se para se levantar e então percebeu que lhe era impossível.‭ ‬Com a cabeça a estourar,‭ ‬tentou de novo.‭ ‬E nada.‭ ‬Tentou outra vez e o máximo que conseguiu foi arrastar levemente a cadeira,‭ ‬o que provocou um rangido de um soalho velho e invisível.‭ ‬Aí,‭ ‬as vozes que escutava vagamente ao longe deixaram de se ouvir durante uns momentos para aquela que,‭ ‬de alguma forma,‭ ‬sentia ser-lhe familiar prosseguir:‭ “‬Que foi isto‭? ‬Vou lá dentro ver o que se passa.‭” ‬Mário voltou a abandonar a cabeça do corpo,‭ ‬deitando-a para trás,‭ ‬suspensa nas costas da cadeira,‭ ‬e a porta abriu-se.‭ ‬Em contraluz apareceu-lhe em frente o vulto de um homem com os pés bem firmes naquele chão solto e com as mãos caídas de uns braços que mais pareciam as de um pistoleiro em pose para sacar a arma do coldre.‭ “‬Quem é este tipo‭? ‬Onde é que já vi aquela cabeleira despenteada‭? ‬Ai,‭ ‬a minha cabeça‭…” ‬sofreu Mário imóvel e de olhos semicerrados.‭ ‬Depois de se certificar que tudo continuava na mesma,‭ ‬o vulto voltou-lhe as costas vociferando no seu timbre de voz característico:‭
-‭ ‬Malditos ratos‭! ‬Começo a ficar farto deste lugar.
Ao bater da porta,‭ ‬Mário respirou fundo de alívio enquanto a sua cabeça começava a querer subir à tona.‭ ‬Esperou que a conversa do outro lado recomeçasse para ele,‭ ‬por sua vez,‭ ‬recomeçar também a tentar livrar-se da situação em que estava.‭ ‬Começou por mexer as mãos e,‭ ‬com surpresa,‭ ‬notou que não estavam tão presas quanto os pés.‭ ‬Motivado pelo brinde inesperado,‭ ‬continuou a rodar os pulsos e a tentar afastar as mãos para aliviar a tensão do nó que cada vez mais lhe parecia mal dado.‭ ‬Parou por segundos de gesticular e veio-lhe à cabeça,‭ ‬ainda dorida mas cada vez mais determinada,‭ ‬uma noite especial que havia tido com a falecida.‭ ‬A noite em que ele realizou a sua maior fantasia da adolescência.‭ ‬A noite em que Mário convenceu a Adelaide a deixar prender-lhe as mãos atrás das costas para assim se demorar num delicioso festim de prazeres contínuos e inesquecíveis.‭ ‬Depois de a ter levado,‭ ‬com mestria,‭ ‬a seis orgasmos estridentes que se revelaram por ser‭ “‬Dos melhores que já tive na vida‭”‬,‭ ‬tal como ela lhe confidenciou já de cigarro na mão,‭ ‬o que para a rodagem de Adelaide,‭ ‬foi um elogio e peras,‭ ‬como nenhum outro,‭ ‬e que,‭ ‬por isso,‭ ‬lhe elevou a sua prezada auto-estima masculina a um estado de confiança luxuriante,‭ ‬daí para a frente sempre comprovada por todas as outras mulheres com que Mário se deitou.‭ ‬E quando Mário se preparava para lhe introduzir naquela rata escancarada de um desejo em delírio a banana voluptuosamente bem escolhida e guardada para esse momento,‭ ‬uma das mãos de Adelaide sacudiu esse fruto proibido para com a outra apanhar de surpresa o mastro embandeirado de prazer de Mário e metê-lo,‭ ‬ela,‭ ‬bem lá dentro dizendo-lhe:‭ “‬É a ti que eu quero.‭” ‬Ao segundo cigarro,‭ ‬Mário perguntou-lhe como conseguira ela fazer aquilo,‭ ‬ao que Adelaide respondeu,‭ ‬confiante:
-‭ ‬Mesmo que não o diga,‭ ‬uma mulher sabe sempre quando um homem já foi às putas.‭ ‬E esse nó que tu me deste,‭ ‬só uma puta to podia ter ensinado a fazer.‭ ‬São todos iguais e para os desatar,‭ ‬basta puxar ao mesmo tempo pelas duas pontas.
Naturalmente excitado pela descoberta,‭ ‬Mário assim o fez e,‭ ‬em três tempos,‭ ‬estava em pé enquanto seguia,‭ ‬concentrado,‭ ‬a conversa dos outros,‭ ‬do outro lado da porta.‭ ‬Olhou em redor e atrás de si reparou nas pedras da calçada que uma luz ténue e distante de um candeeiro de rua lhe anunciava,‭ ‬à socapa,‭ ‬pela janela.‭ ‬Antes de dar um passo,‭ ‬mediu a distância até à janela e num salto atirou-se através dela,‭ ‬quebrando-a num chinfrim nocturno para acabar no chão da rua,‭ ‬em pleno caminho para a liberdade.‭ ‬Já a desaparecer da esquina,‭ ‬a correr pela vida,‭ ‬ainda ouviu a mesma voz masculina a gritar:‭ “‬Foda-se.‭ ‬O gajo fugiu.‭”

Ainda atordoado com os recentes acontecimentos,‭ ‬Mário acordou no dia seguinte já atrasado para o exame de Anatomia onde chegou mesmo em cima da hora,‭ ‬ainda a tempo de pedir a folha de exame ao Professor Reinaldo.‭ ‬Mário fitou-o enquanto o outro lhe entregava o teste,‭ ‬a sua cara,‭ ‬subitamente,‭ ‬parecia outra.‭ ‬A de um assassino com dupla personalidade.‭ “‬Será ele o nosso Dr.‭ ‬Jeckill e Mr Hyde‭?”‬,‭ ‬questionou-se ao mesmo tempo que lhe agradecia cabisbaixo o formulário.
Duas horas mais tarde,‭ ‬e profundamente esgotado pelo exame que não conseguira fazer,‭ ‬Mário estava já sentado noutra cadeira,‭ ‬fazendo a prova que mais lhe era habitual,‭ ‬a de um fino gelado na cervejaria do costume,‭ ‬a do Libório.‭ ‬À sua volta estava a gente de sempre:‭ ‬o Guima,‭ ‬o pintor envelhecido por uma cegueira galopante,‭ ‬à conversa com um par de estudantes veteranos,‭ ‬outros‭ “‬morcegos‭” ‬sentavam-se mais lá ao fundo e,‭ ‬à sua frente,‭ ‬uma mesa de miúdas castiças.‭ ‬Todos eram atendidos pelo mesmo empregado de há trinta anos,‭ ‬o sôr Freitas,‭ ‬um cinquentenário que preferiu as conversas de café às do entre o deve e o haver que lhe contabilizavam a vida antes do casamento.‭ ‬Bastou ao Mário perguntar-lhe‭ “‬E então‭? ‬Novidades‭?”‬,‭ ‬que o sôr Freitas,‭ ‬o principal ardina da cidade,‭ ‬desbobinou logo:‭
-‭ ‬Olhe amigo,‭ ‬então não é que a casa de putas da Isaura vai reabrir na próxima sexta‭?

-‭ ‬Já nesta sexta‭? ‬-‭ ‬perguntou Mário incrédulo a tentar ganhar tempo para perceber o que se estava a passar.

-‭ ‬É como lhe digo‭! ‬Neste país,‭ ‬quem tem amigos ricos não morre na prisão.‭ ‬-‭ ‬sentenciou o sôr Freitas abandonando revoltado o fino na mesa já com o ouvido experimentado num‭ ‬pssst‭!‬ chegado da mesa em frente.
‭“‬Realmente‭!”‬,‭ ‬pensou Mário dando um gole lento na cerveja cheia à pressão,‭ “‬como a frieza empírica deste homem põe a nu a verdade dos factos.‭ ‬A vida,‭ ‬para muitos,‭ ‬é um professor cruel mas eficaz.‭”

E na sexta-feira seguinte lá estava o Mário com os seus colegas à entrada da‭ “‬Isaurinha‭”‬,‭ ‬como entre eles era conhecida‭ ‬a casa de putas.
O ambiente estava estranho.‭ ‬Tudo se parecia com a reabertura do cabaret da moda.‭ ‬Havia um porteiro,‭ ‬neste caso,‭ ‬uma porteira,‭ ‬a Dona Fátima,‭ ‬que como todos os porteiros tem um nome conhecido por toda a gente,‭ ‬a seleccionar os mais ilustres entre os magotes de pessoas que se juntavam à porta,‭ ‬entre elas alguns improváveis notáveis da cidade que se misturavam num colectivo maioritariamente masculino já que os prazeres reconhecidos à casa piscavam também algum olho à ala feminina da sociedade.‭ ‬Do interior,‭ ‬sentiam-se lentas luzes discretas a condizer com‭ ‬belles chansons francaises que compunham como nenhumas outras a atmosfera.
Mário,‭ ‬um desses ilustres clientes da casa,‭ ‬viu de imediato o seu passaporte reconhecido e entrou,‭ ‬juntamente com os seus amigos para o ex-local do crime.‭ ‬Lá dentro foi de imediato recebido pela anfitriã,‭ ‬a Dona Isaura,‭ ‬que,‭ ‬ainda com um ar,‭ ‬como dizer‭?‬,‭ ‬combalido pelo sucedido,‭ ‬o recebeu com saudades,‭ ‬abraçando-o ao mesmo tempo que pousava o cabeça no seu ombro.
-‭ ‬O espectáculo tem de continuar‭ ‬-‭ ‬segredou-lhe ela tentando justificar-se,‭ ‬convencendo-o com a confortável noção de que o tempo acaba sempre por curar tudo.
-‭ ‬Enfim,‭ ‬o que lá vai,‭ ‬lá vai‭… ‬-‭ ‬continuou,‭ ‬erguendo com pêsames a cabeça para em seguida oferecer ao grupo um copo do champanhe habitual,‭ ‬convidando,‭ ‬sorrindo:
-‭ ‬Hoje,‭ ‬as meninas são por conta da casa‭! ‬Aproveitem.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Cap. 4 (Escrito por Mónica Almeida)

O funeral de Adelaide da Conceição, realizou-se ontem, segunda-feira, 13 de Fevereiro de 1905, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios.

Fechou a porta da pensão com cautela e seguiu em direcção ao baile que havia junto ao coreto.
-Merda! – de súbito, o céu foi iluminado pelos relâmpagos e a gritaria estridente das gotas de uma chuva tempestuosa parecia furar-lhe os tímpanos. Sem chapéu alto ou casaca, olhou em redor, em busca de um abrigo. Refugiou-se na entrada da Igreja, a casa de um Deus que na noite de Domingo abrira as portas ao putedo de Coimbra para celebrar o velório de Adelaide.
Os minutos passavam e à porta do templo cristão, Mário tiritava de frio. Pensava nos seios leiteiros da prostituta que acabara enterrada sem coração. E o Doutor Reinaldo, presente naquele instante de ressurreição... será inconveniente falar-lhe amanhã, depois da aula?
Perdido nos próprios pensamentos não deu pelo aproximar de um vulto que saía da Igreja. Ao longe, alguém corria, apressado, tentando fugir à brutalidade da trovoada. À medida que o ruído dos passos se aproximava, reconheceu o rosto aterrorizado de dona Isaura, que veloz, parecia apontar na sua direcção.
- Pelo amor de Deus, não! Menino Mário, fuja! Fuja! – o jovem levantou-se, tentando compreender o que lhe gritava a assustada meretriz e nesse momento perdeu os sentidos, atingido por um vaso atrevido e pesado que alguém lhe enterrara, com força, na nuca.
- Até breve, Dr. Mendonça – ouviu-se então.

Teu coração não palputa
Triste puta assassinada
Tanto prazer e gosto
Para acabares assim estripada...

Dois jovens tocavam viola enquanto um grupo de rapazes improvisava a nostálgica cantata. Beatriz choramingava na cadeira do canto.
- Que ordinários! Ainda brincam com a morte da desgraçada...
- Oh Bia, não sejas piegas, estamos aqui para nos divertir! – e Carolina, fazendo-lhe um carinho fraternal, observava os rapazes com interesse – estranho o Mário ainda não ter chegado...
- O Mário! O Mário! Bem sei que andas perddida de amores pelo doutorinho!
- Eu? Deus me livre! Nem que me aparecesse à janela eu lhe dava atenção...
- Ora muito boas noites, senhoritas!
Zé Onório, enrolando as pontas do bigode, cumprimentou as raparigas com uma vénia ligeira e voltou-se para Beatriz:
- Concedei-me o prazer de uma dança ao ritmo desta canção!
- Não me parece que o momento seja oportuno, José... – reclamou, olhando de lado para a mãe que a fitava com desdém.
- Não aceito um não como resposta – e sério, estendeu-lhe a mão – tenha a gentileza.
Carolina observou as saias amarrotadas da amiga a serem puxadas para a dança por aquele matulão cambaleante. Tão lindo e ruim... e um ciúme ligeiro invadiu-lhe o âmago. Traidora! Desde que entrou na Universidade parece uma cortesã! Empenhada nestas conquistas baratas, que vergonha! Doutora da vida, é o que é! Amiga da puta, o Diabo a tenha, que a mim ela não engana! Com pena da morte de uma destruidora de lares... p’ráquilo!!! E com desdém contemplava o espectáculo da dança do par, próximos, quase mesmo amantizados, mesmo nas barbas da mãe. Que indecência!
- Bia, não tolero tanta incerteza! – o estudante fixava a amada – parto esta noite para Lisboa. Vens comigo!
- Estás doudo! – e a rapariga tombou – que seria de minha vida? Sabes da minha condição!
- Não me importa! Sem a Adelaide não há quem nos valha!
- Pois te digo que para mim, Deus a tenha, só agradeço aos pobres bichos que lhe roeram o coração... é da forma que não leva as minhas dores para o céu...
- Ou para o fundo da terra, que os anjos não têm sexo!
Escandalizada, Beatriz recuou:
- Como ousas, grosseirão?
- A tua inocência perturba-me, amor, ambos sabemos o alívio que esta desgraça nos trouxe... pelo menos não nos descobre a situação! Já não temos testemunhas...
E erguendo a moça para o lado, fez uma vénia e aplaudiu a canção.
Preparando-se o homem da gaita para tocar, a amante ainda perguntou “que fuga planejas, amor?”, mas a resposta foi interrompida pelo punho erguido do Manelito, que embriagado, se lançou ao nariz de Onório:
- Esta é pelas aias maviosas, sacana!
Entre sangue, pontapés, socos e uivos, a mãe da universitária arrastou-a por um braço. Haja decência! Apesar de se saber em beneficiada situação, a rapariga temeu a severidade da tutora. Apesar da sua educação liberal, assomava-se um castigo medonho.

Onório! Onório! Vais-te e eu, que me resta nesta desgraçada situação?
O jovem, caído por entre as pisadelas dos borrachos que se espancavam, nem tão pouco a vislumbrou. Ao lado, Carolina sentia-se de certa forma vingada mas lá nas suas profundezas era Mário que lhe causava aflição. Onde estás, Mário? Onde estás? E de braços colados aos da mãe ambas as amigas fungavam, sem motivo aparente.

Mário acordou amordaçado, de mãos e pés atados a uma cadeira.
Doía-lhe a cabeça, como se vitimado pela maior ressaca da vida. Em redor, escuridão. Ao fundo, umas vozes sussurravam...

quinta-feira, agosto 17, 2006

Cap. 3 (Escrito por Luísa Peres)

A mente de Mário via e revia todos os acontecimentos a que assistira na madrugada de sábado. Tudo aquilo o inquietava. Não o corpo aberto, como terceiranista, já tinha visto alguns, mas o mistério que envolvia aquela morte.
Quem fizera aquilo? Talvez algum cliente. Mas que cliente? Eram muitos aqueles que tinham Adelaide como preferida. E porquê? Com certeza não seria por não ter gostado do serviço. Adelaide, como nenhuma outra, sabia agradar um homem.
Mário sentia necessidade de solucionar aquele mistério, de saciar a sua curiosidade.
-Mário, Dr. Mário Mendonça? - quem chamava era o professor Reinaldo.
-Sim, desculpe... - respondeu Mário ainda aturdido.
-Não lhe agrada o tema da aula de hoje? Ou a minha exposição está demasiado enfadonha? - perguntou o professor com um sorriso nos lábios. Sabia que as suas aulas eram tudo menos enfadonhas, caso contrário o anfiteatro não estaria sempre cheio.
Mário sorriu constrangido. Nada respondeu, sabia que as perguntas eram de retórica e usadas apenas para o despertar.
O resto do dia correu com normalidade. As aulas terminaram às três da tarde. No dia seguinte tinha exame, mas não se sentia com cabeça para se entregar aos livros. Nem com disposição para um estudo em grupo na biblioteca da universidade. Optou por ir dar uma volta para espairecer. Quando saiu para o exterior sentiu um frio cortante que, com um gesto automático, o levou a traçar a capa do traje académico. O céu parecia querer desabar. Se não soubesse as horas, diria que o dia estava a findar.
Deambulou pelas quelhas e vielas da cidade, sem destino, até que deu por si nas imediações do bordel de D. Isaura. Diminuiu o compasso dos passos até se deter. Em frente à casa encontrava-se parada uma carreta. Mário permaneceu imóvel durante algum tempo. Tudo aquilo lhe parecia estranho. Os colegas tinham comentado que a casa tinha cessado os seus serviços, por tempo indetermidado. D. Isaura colocara mesmo a hipótese de não voltar abrir a porta. Nem outras coisas.
Que se passaria ali? Mal Mário formulou mentalmente esta questão, viu dois homens transportarem, com alguma dificuldade, um embrulho comprido, envolto num plástico preto. Logo de seguida surgiu D. Isaura acompanhada de um homem. Era dificil não a reconhecer, mesmo àquela distância. O homem que a acompanhava também não lhe era de todo estranho. O padrão do casaco que usava era-lhe familiar.
- É o professor Reinaldo. - Sussurrou Mário, surpreendido. Não havia dúvidas. Que fazia ele ali?
Mário aproximou-se um pouco mais. Mas voltou a parar repentinamente. Pálido, segurou-se a um candeeiro de rua. Ao colocarem o embrulho negro na carreta, umas das pontas desdobrou-se deixando entrever um rosto. Aquilo que eles transportavam era um corpo. Era Adelaide.
Num gesto automático, Mário rodou os calcanhares e fez o percurso inverso, desta vez com um passo muito mais rápido. Pelo caminho recordou-se da conversa que tivera com alguns colegas. Tinham estado presentes na casa de Isaura, no dia seguinte ao sucedido. Queriam prestar uma última homenagem à mulher que lhes deu a conhecer novos prazeres, que jamais esqueceriam. Será que o funeral não tinha acontecido?
Mário entrou com pressa na pensão onde residia. Na sala de convívio encontrou aquilo que procurava. O Jornal de Coimbra. Rapidamente localizou o artigo que pretendia: Coimbra ainda murmura os acontecimentos do último fim de semana. As informações são escassas, mas tudo indica que foi um crime premeditado. Muitas são as teorias que surgem. O funeral de Adelaide da Conceição, realizou-se ontem, segunda-feira, 13 de Fevereiro de 1905, na Igreja de....

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domingo, agosto 13, 2006

Cap. 2 (Escrito por Rui Martins Borges)

Lá em baixo, ninguém ligou aos gritos de tão habituados que estavam a ouvi-los por tudo e por nada. Os homens continuavam a cortejar as putas e elas o seu dinheiro à medida que se sentavam ao seu colo e pediam ao empregado de balcão garrafas e mais garrafas de champanhe.
Mário, o terceiranista, tapou os olhos àquela que o acompanhava. Ela entrou num profundo estado de choque ao ver Adelaide nua, coberta por um imenso cobertor de sangue. Apesar disso, o cliente estudantil mandou-a descer para avisar Isaura do sucedido. Com as mãos trementes agarrava-se ao corrimão enquanto descia lentamente os degraus de madeira podre. O corrimão coberto de ferrugem era tão frágil que dava sinal de poder cair a qualquer momento.
Mário manteve o olhar fixo na consternada mulher que gemia a cada passo que dava. Então, rodou novamente o olhar para a mulher ensanguentada, deitada na cama. Mirou em redor e nas paredes viu os claros traços das pedras na parede. A tinta estalou já há muito tempo e as infiltrações eram constantes. Os ratos eram uma visita indesejada que, naquele momento, se encontravam à volta do corpo atraídos, talvez, pelo cheiro do sangue. No chão escuro, várias garrafas de vinho estavam caídas. Todas vazias. Em cima de uma mesa-de-cabeceira, uma travessa de prata barata, certamente oferecida por um nobre, continha peças de fruta e carne. Os ratos banqueteavam-se. O aspirante a médico aproximou-se da cama e inspeccionou a travessa… Reconheceu algo nela, mas tinha medo de admiti-lo. Fitando os roedores, acocorou-se e concentrou-se. Finalmente reconheceu o objecto que servia de alimento e vomitou ajoelhado, apoiado numa mão. Limpou a boca e levantou-se. Levou os olhos ao peito aberto de Adelaide, confirmando o que vira na bandeja. O coração fora removido…
Os seus olhos encaminharam-se para uma cadeira. Nela estavam as roupas da rameira impecavelmente dobradas, sem uma nódoa de sangue. Dirigiu-se a elas, mas não lhes mexeu e o seu olhar confuso voltou-se novamente para Adelaide. Ouvia as pessoas a subirem as escadas aos berros e em passo apressado. Olhou intrigado para a expressão da vítima, que parecia estar descontraída, quase sorrindo com o cabelo cuidadosamente escovado cobrindo os ombros.