“Eu conheço essa voz” – pensou Mário ainda antes de abrir os olhos. “Onde estou? Que sítio é este? Está tudo escuro… não vejo nada.” – continuou ele num raciocínio lento e intermitente. Estava no máximo das suas capacidades. Tentou mexer-se para se levantar e então percebeu que lhe era impossível. Com a cabeça a estourar, tentou de novo. E nada. Tentou outra vez e o máximo que conseguiu foi arrastar levemente a cadeira, o que provocou um rangido de um soalho velho e invisível. Aí, as vozes que escutava vagamente ao longe deixaram de se ouvir durante uns momentos para aquela que, de alguma forma, sentia ser-lhe familiar prosseguir: “Que foi isto? Vou lá dentro ver o que se passa.” Mário voltou a abandonar a cabeça do corpo, deitando-a para trás, suspensa nas costas da cadeira, e a porta abriu-se. Em contraluz apareceu-lhe em frente o vulto de um homem com os pés bem firmes naquele chão solto e com as mãos caídas de uns braços que mais pareciam as de um pistoleiro em pose para sacar a arma do coldre. “Quem é este tipo? Onde é que já vi aquela cabeleira despenteada? Ai, a minha cabeça…” sofreu Mário imóvel e de olhos semicerrados. Depois de se certificar que tudo continuava na mesma, o vulto voltou-lhe as costas vociferando no seu timbre de voz característico:
- Malditos ratos! Começo a ficar farto deste lugar.
Ao bater da porta, Mário respirou fundo de alívio enquanto a sua cabeça começava a querer subir à tona. Esperou que a conversa do outro lado recomeçasse para ele, por sua vez, recomeçar também a tentar livrar-se da situação em que estava. Começou por mexer as mãos e, com surpresa, notou que não estavam tão presas quanto os pés. Motivado pelo brinde inesperado, continuou a rodar os pulsos e a tentar afastar as mãos para aliviar a tensão do nó que cada vez mais lhe parecia mal dado. Parou por segundos de gesticular e veio-lhe à cabeça, ainda dorida mas cada vez mais determinada, uma noite especial que havia tido com a falecida. A noite em que ele realizou a sua maior fantasia da adolescência. A noite em que Mário convenceu a Adelaide a deixar prender-lhe as mãos atrás das costas para assim se demorar num delicioso festim de prazeres contínuos e inesquecíveis. Depois de a ter levado, com mestria, a seis orgasmos estridentes que se revelaram por ser “Dos melhores que já tive na vida”, tal como ela lhe confidenciou já de cigarro na mão, o que para a rodagem de Adelaide, foi um elogio e peras, como nenhum outro, e que, por isso, lhe elevou a sua prezada auto-estima masculina a um estado de confiança luxuriante, daí para a frente sempre comprovada por todas as outras mulheres com que Mário se deitou. E quando Mário se preparava para lhe introduzir naquela rata escancarada de um desejo em delírio a banana voluptuosamente bem escolhida e guardada para esse momento, uma das mãos de Adelaide sacudiu esse fruto proibido para com a outra apanhar de surpresa o mastro embandeirado de prazer de Mário e metê-lo, ela, bem lá dentro dizendo-lhe: “É a ti que eu quero.” Ao segundo cigarro, Mário perguntou-lhe como conseguira ela fazer aquilo, ao que Adelaide respondeu, confiante:
- Mesmo que não o diga, uma mulher sabe sempre quando um homem já foi às putas. E esse nó que tu me deste, só uma puta to podia ter ensinado a fazer. São todos iguais e para os desatar, basta puxar ao mesmo tempo pelas duas pontas.
Naturalmente excitado pela descoberta, Mário assim o fez e, em três tempos, estava em pé enquanto seguia, concentrado, a conversa dos outros, do outro lado da porta. Olhou em redor e atrás de si reparou nas pedras da calçada que uma luz ténue e distante de um candeeiro de rua lhe anunciava, à socapa, pela janela. Antes de dar um passo, mediu a distância até à janela e num salto atirou-se através dela, quebrando-a num chinfrim nocturno para acabar no chão da rua, em pleno caminho para a liberdade. Já a desaparecer da esquina, a correr pela vida, ainda ouviu a mesma voz masculina a gritar: “Foda-se. O gajo fugiu.”
Ainda atordoado com os recentes acontecimentos, Mário acordou no dia seguinte já atrasado para o exame de Anatomia onde chegou mesmo em cima da hora, ainda a tempo de pedir a folha de exame ao Professor Reinaldo. Mário fitou-o enquanto o outro lhe entregava o teste, a sua cara, subitamente, parecia outra. A de um assassino com dupla personalidade. “Será ele o nosso Dr. Jeckill e Mr Hyde?”, questionou-se ao mesmo tempo que lhe agradecia cabisbaixo o formulário.
Duas horas mais tarde, e profundamente esgotado pelo exame que não conseguira fazer, Mário estava já sentado noutra cadeira, fazendo a prova que mais lhe era habitual, a de um fino gelado na cervejaria do costume, a do Libório. À sua volta estava a gente de sempre: o Guima, o pintor envelhecido por uma cegueira galopante, à conversa com um par de estudantes veteranos, outros “morcegos” sentavam-se mais lá ao fundo e, à sua frente, uma mesa de miúdas castiças. Todos eram atendidos pelo mesmo empregado de há trinta anos, o sôr Freitas, um cinquentenário que preferiu as conversas de café às do entre o deve e o haver que lhe contabilizavam a vida antes do casamento. Bastou ao Mário perguntar-lhe “E então? Novidades?”, que o sôr Freitas, o principal ardina da cidade, desbobinou logo:
- Olhe amigo, então não é que a casa de putas da Isaura vai reabrir na próxima sexta?
- Já nesta sexta? - perguntou Mário incrédulo a tentar ganhar tempo para perceber o que se estava a passar.
- É como lhe digo! Neste país, quem tem amigos ricos não morre na prisão. - sentenciou o sôr Freitas abandonando revoltado o fino na mesa já com o ouvido experimentado num pssst! chegado da mesa em frente.
“Realmente!”, pensou Mário dando um gole lento na cerveja cheia à pressão, “como a frieza empírica deste homem põe a nu a verdade dos factos. A vida, para muitos, é um professor cruel mas eficaz.”
E na sexta-feira seguinte lá estava o Mário com os seus colegas à entrada da “Isaurinha”, como entre eles era conhecida a casa de putas.
O ambiente estava estranho. Tudo se parecia com a reabertura do cabaret da moda. Havia um porteiro, neste caso, uma porteira, a Dona Fátima, que como todos os porteiros tem um nome conhecido por toda a gente, a seleccionar os mais ilustres entre os magotes de pessoas que se juntavam à porta, entre elas alguns improváveis notáveis da cidade que se misturavam num colectivo maioritariamente masculino já que os prazeres reconhecidos à casa piscavam também algum olho à ala feminina da sociedade. Do interior, sentiam-se lentas luzes discretas a condizer com belles chansons francaises que compunham como nenhumas outras a atmosfera.
Mário, um desses ilustres clientes da casa, viu de imediato o seu passaporte reconhecido e entrou, juntamente com os seus amigos para o ex-local do crime. Lá dentro foi de imediato recebido pela anfitriã, a Dona Isaura, que, ainda com um ar, como dizer?, combalido pelo sucedido, o recebeu com saudades, abraçando-o ao mesmo tempo que pousava o cabeça no seu ombro.
- O espectáculo tem de continuar - segredou-lhe ela tentando justificar-se, convencendo-o com a confortável noção de que o tempo acaba sempre por curar tudo.
- Enfim, o que lá vai, lá vai… - continuou, erguendo com pêsames a cabeça para em seguida oferecer ao grupo um copo do champanhe habitual, convidando, sorrindo:
- Hoje, as meninas são por conta da casa! Aproveitem.
- Malditos ratos! Começo a ficar farto deste lugar.
Ao bater da porta, Mário respirou fundo de alívio enquanto a sua cabeça começava a querer subir à tona. Esperou que a conversa do outro lado recomeçasse para ele, por sua vez, recomeçar também a tentar livrar-se da situação em que estava. Começou por mexer as mãos e, com surpresa, notou que não estavam tão presas quanto os pés. Motivado pelo brinde inesperado, continuou a rodar os pulsos e a tentar afastar as mãos para aliviar a tensão do nó que cada vez mais lhe parecia mal dado. Parou por segundos de gesticular e veio-lhe à cabeça, ainda dorida mas cada vez mais determinada, uma noite especial que havia tido com a falecida. A noite em que ele realizou a sua maior fantasia da adolescência. A noite em que Mário convenceu a Adelaide a deixar prender-lhe as mãos atrás das costas para assim se demorar num delicioso festim de prazeres contínuos e inesquecíveis. Depois de a ter levado, com mestria, a seis orgasmos estridentes que se revelaram por ser “Dos melhores que já tive na vida”, tal como ela lhe confidenciou já de cigarro na mão, o que para a rodagem de Adelaide, foi um elogio e peras, como nenhum outro, e que, por isso, lhe elevou a sua prezada auto-estima masculina a um estado de confiança luxuriante, daí para a frente sempre comprovada por todas as outras mulheres com que Mário se deitou. E quando Mário se preparava para lhe introduzir naquela rata escancarada de um desejo em delírio a banana voluptuosamente bem escolhida e guardada para esse momento, uma das mãos de Adelaide sacudiu esse fruto proibido para com a outra apanhar de surpresa o mastro embandeirado de prazer de Mário e metê-lo, ela, bem lá dentro dizendo-lhe: “É a ti que eu quero.” Ao segundo cigarro, Mário perguntou-lhe como conseguira ela fazer aquilo, ao que Adelaide respondeu, confiante:
- Mesmo que não o diga, uma mulher sabe sempre quando um homem já foi às putas. E esse nó que tu me deste, só uma puta to podia ter ensinado a fazer. São todos iguais e para os desatar, basta puxar ao mesmo tempo pelas duas pontas.
Naturalmente excitado pela descoberta, Mário assim o fez e, em três tempos, estava em pé enquanto seguia, concentrado, a conversa dos outros, do outro lado da porta. Olhou em redor e atrás de si reparou nas pedras da calçada que uma luz ténue e distante de um candeeiro de rua lhe anunciava, à socapa, pela janela. Antes de dar um passo, mediu a distância até à janela e num salto atirou-se através dela, quebrando-a num chinfrim nocturno para acabar no chão da rua, em pleno caminho para a liberdade. Já a desaparecer da esquina, a correr pela vida, ainda ouviu a mesma voz masculina a gritar: “Foda-se. O gajo fugiu.”
Ainda atordoado com os recentes acontecimentos, Mário acordou no dia seguinte já atrasado para o exame de Anatomia onde chegou mesmo em cima da hora, ainda a tempo de pedir a folha de exame ao Professor Reinaldo. Mário fitou-o enquanto o outro lhe entregava o teste, a sua cara, subitamente, parecia outra. A de um assassino com dupla personalidade. “Será ele o nosso Dr. Jeckill e Mr Hyde?”, questionou-se ao mesmo tempo que lhe agradecia cabisbaixo o formulário.
Duas horas mais tarde, e profundamente esgotado pelo exame que não conseguira fazer, Mário estava já sentado noutra cadeira, fazendo a prova que mais lhe era habitual, a de um fino gelado na cervejaria do costume, a do Libório. À sua volta estava a gente de sempre: o Guima, o pintor envelhecido por uma cegueira galopante, à conversa com um par de estudantes veteranos, outros “morcegos” sentavam-se mais lá ao fundo e, à sua frente, uma mesa de miúdas castiças. Todos eram atendidos pelo mesmo empregado de há trinta anos, o sôr Freitas, um cinquentenário que preferiu as conversas de café às do entre o deve e o haver que lhe contabilizavam a vida antes do casamento. Bastou ao Mário perguntar-lhe “E então? Novidades?”, que o sôr Freitas, o principal ardina da cidade, desbobinou logo:
- Olhe amigo, então não é que a casa de putas da Isaura vai reabrir na próxima sexta?
- Já nesta sexta? - perguntou Mário incrédulo a tentar ganhar tempo para perceber o que se estava a passar.
- É como lhe digo! Neste país, quem tem amigos ricos não morre na prisão. - sentenciou o sôr Freitas abandonando revoltado o fino na mesa já com o ouvido experimentado num pssst! chegado da mesa em frente.
“Realmente!”, pensou Mário dando um gole lento na cerveja cheia à pressão, “como a frieza empírica deste homem põe a nu a verdade dos factos. A vida, para muitos, é um professor cruel mas eficaz.”
E na sexta-feira seguinte lá estava o Mário com os seus colegas à entrada da “Isaurinha”, como entre eles era conhecida a casa de putas.
O ambiente estava estranho. Tudo se parecia com a reabertura do cabaret da moda. Havia um porteiro, neste caso, uma porteira, a Dona Fátima, que como todos os porteiros tem um nome conhecido por toda a gente, a seleccionar os mais ilustres entre os magotes de pessoas que se juntavam à porta, entre elas alguns improváveis notáveis da cidade que se misturavam num colectivo maioritariamente masculino já que os prazeres reconhecidos à casa piscavam também algum olho à ala feminina da sociedade. Do interior, sentiam-se lentas luzes discretas a condizer com belles chansons francaises que compunham como nenhumas outras a atmosfera.
Mário, um desses ilustres clientes da casa, viu de imediato o seu passaporte reconhecido e entrou, juntamente com os seus amigos para o ex-local do crime. Lá dentro foi de imediato recebido pela anfitriã, a Dona Isaura, que, ainda com um ar, como dizer?, combalido pelo sucedido, o recebeu com saudades, abraçando-o ao mesmo tempo que pousava o cabeça no seu ombro.
- O espectáculo tem de continuar - segredou-lhe ela tentando justificar-se, convencendo-o com a confortável noção de que o tempo acaba sempre por curar tudo.
- Enfim, o que lá vai, lá vai… - continuou, erguendo com pêsames a cabeça para em seguida oferecer ao grupo um copo do champanhe habitual, convidando, sorrindo:
- Hoje, as meninas são por conta da casa! Aproveitem.
4 comentários:
A trama continua bem intrincada. Veremos como se unem as pontas soltas
grande volta...grande trama e que grande festa se aproxima...muito bom, adorei este texto..e adoro-te meu amor
1xi, teco
Estou a gostar bastante
Apresenta-se mais um nó no novelo. Quem tiver a ousadia de começar a desbravar esta história vai encontrar uma montanha russa cheia de altos e baixos.Parabéns André.
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